Puna e Quebrada de Humahuaca

8 a 16 jan 2018 9 dias 539 km

Preparados. Confiantes. Aquecidos. Andinos. É isso aí, mesmo. Desenrolamos nossa segunda quixotesca expedição cordillerana. Auto intitulados experientes, equipados, conscientes e treinados, fomos no mínimo, ousados. Acha que levar um pneu reserva é precaução, cauteloso leitor? Pois ouça essa: nós separamos um Mr. Heil inteiro de reserva!

Seguros de nossos planos, respaldados pela experiência do Paso Vergara, partimos de carro com destino à San Salvador de Jujuy (S. S. de Jujuy, para os íntimos), no norte da Argentina. Revisando a bagagem, acabamos por abrir mão do Mr. Heil reserva, já que o próprio Mr. (o original) preferiu ficar em casa e se preservar. E, sem o original, não faz sentido ocupar lugar com peça de heilposição. Embora, no caso, o João tenha ocupado o lugar. Mas o do próprio João, mesmo. Sem reservas. Sem reservas, mesmo, dessa vez. Vai que acontece um imprevisto e a gente perde a reserva?

"Señor, su pasaporte está vencido. No puede pasar. El proximo."

Policial da Aduana Brasil-Argentina, em Bernando de Irigoyen-AR

Se quebrasse o bagageiro no meio do deserto do Atacama, a gente dava um jeito. Passaporte vencido, não. E a identidade? Não tava no check-list. Não serve a carteira de motorista? A policial ignorou sobriamente a pergunta. Alguém aí sabe um programa bom para curtir a tarde em Dionísio Cerqueira? Renovação de passaporte? Acho que não dá tempo. Como faz pra identidade vir voando de Curitiba pra cá?

  • Revisor: Então decidiu que vai gastar a introdução inteira de um crossandino incrível com essa historieta de passaporte vencido?
  • Redator: Estou certo de que há um conflito de interesse aqui, dado que o senhooor levou um passaporte vencido e esqueceu a identidade. Aliás, yo que tu não questionava mais, haja vista que sua identidade nem foi revelada.
  • Revisor: Hahahaha, tá bem, valeu o trocadilho.

Sem dúvida, uma grande operação fez um RG desaparecer de uma caixinha em Curitiba e aparecer na rodoviária de Barracão-PR na manhã seguinte. Agora devidamente legais, adentramos a Argentina e seguimos viagem, rumando mais dois - e retilíneos - dias até o marco zero da viagem de bicicleta, a distante S. S. de Jujuy. Da viagem de carro a recordação é cansaço, mas também calmaria. 1.500 km de Argentina e só fomos parados uma vez pela polícia, logo depois da Aduana, para checagem. ¡Gracias!

A tal cordilheira branca é mesmo uma droga. Experimentou uma vez, é difícil não cair no vício. Foi nesses termos que decidimos nos aventurar por uma das tríplices fronteiras mais worldtouring da América Latina: Puna! Ou, para os íntimos, aquela esquina da salta-argentina com atacama-chilena e salares-dos-fundos-bolivianos. O sonho era grandioso: cruzar duas vezes a cordilheira, indo e voltando, além de encarar um extenso altiplano. Botando o Atacama nessa conta.

Inspirados na bem sucedida experiência prévia, fizemos as provisões necessárias e partimos rumo ao novo e muito ampliado desafio. Viver acima de 3.000 m seria só o começo. Previsão de -12ºC na barraca a noite? Manda, a gente encara.

  • Redator, Revisor e Condutor, em uníssono suspirante: Mas e a chuva, hein? Quem esperaria chuva na Puna?! Granizo?!! E a água contaminada, que tal?!

Um dia após o outro, o roteiro foi redesenhado. Novos caminhos sendo traçados, novas histórias para contar - e o todo só ficou pronto, pronto mesmo, na chegada final em S. S. de Jujuy (sim, ela mesma, mas pelo outro lado).

"Numa expedição como essas, não tem como ser indiferente. Cada um retorna com uma nova identidade."

A mesma policial argentina (se tivesse tempo, paciência, bom humor e um pouco de sarcasmo) (e um bom português)

Em nove dias de pedal (noves fora os de carro), não faltaram anedotas. Nem subidas, nem frio. Perrengues, definitivamente, estavam lá. Diálogos dúbios com llamas, talvez. Tudo ornamentado pela belíssima paisagem da Puna argenta. Não tem como não se identificar.

Mapa & Tracks

Vídeo

1La Cornisa 1 dia 95 km
DIA 1 san salvador de jujuy, camino la cornisa, salta

Como forma de assentamento de bagagens e aquecimento (e olha que aquecimento é tema sério na cordilheira), decidimos que o primeiro trecho seria de apenas um dia, entre as capitais das províncias argentinas de Jujuy e Salta, com poucas provisões. Percorremos a peculiar La Cornisa, caminho ecológico que liga as duas cidades, ambientando-nos antes de cair no inóspito. Algumas surpresas já estavam reservadas por aí.

Esconder o carro do João (a velha guerreira, carregadora de homens e bikes) tomou um bom tempo da manhã. Descobrimos que os argentinos levam a sério suas vacaciones. Depois de muita busca (e tiendas cerradas), deixamos a guerreirinha repousando em segurança numa cochera privada. Finalmente en bicis, pegamos a saída de San Salvador de Jujuy (1.250 m), não sem gastar um pouco de humor no caos metropolitano. Logo descobrimos o nome de algo que muito desejávamos mas pouco víamos: banquina. Banquinha de frutas? Não, não: acostamento, mesmo. Ausência deles, na prática. Tão raros quanto calibradores nas gasolineras.

Na hora do almoço ainda estávamos no limite urbano, com um solão a pino. Comemos umas duas ou três empanadas (de pino), iguaria de lamber os dedos. Aliás, falando neles, lembra do Dedo, o francês caroneiro do Paso Vergara? Nas províncias de Jujuy e Salta, o dedo reina nas pistas.

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Dedo
Meio de transporte largamente utilizado por mochileiros na região Andina (há indícios deles em Misiones, também). É tipo um uber que você não precisa pagar, mas vem com o ônus de não ir exatamente pra onde você quer. Você não chama botando o dedo no aplicativo: precisa ficar mostrando o dedo no acostamento, mesmo.
Reza a lenda que, na ocasião do presente feito expedicionário, até mesmo a o²army, saudosa bicicleta do du, foi pega a dedo por um mochileiro curioso. Diz-se que, experimento feito, o dedito voltou para o acostamento a dar com o dedo em busca de um veículo que exigisse menos perna.

Livrados do sol do meio-dia, do trânsito e do próprio livramento de acostamento, finalmente nos enredamos no caminho de La Cornisa. Dedo Dado que não é muito fácil defini-la, vamos às analogias. É tipo uma ciclovia, mas mais larga. Como se a Estrada da Graciosa fosse uma ciclovia. Tirando os carros e colocando umas vacas. Tirando a descida e botando um grande sooobe acompanhado de um grande deeesce. Pinta uma faixa no meio, coloca bastante vegetação. Estica até uns 1.500 m de altitude. Agora vai, pedala, meu povo.

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Camino de La Cornisa
Estrada turística entre San Salvador de Jujuy e Salta (e vice-versa), no norte da Argentina. O caminho é bem estreito: no encontro de carros em sentido opostos, um tem que ceder passagem. Bastante sinuoso, serpenteia uma região de floresta densa, variando de 1.160 m a 1.530 m de altitude. A tradução de cornisa é intimista, mas lembra um pouco o caminho: faixa horizontal estreita que corre às margens de um precipício.
É sem dúvida um atrativo imperdível para cicloviajantes, ainda mais que a alternativa de trajeto entre as duas cidades pela rodovia é mais extensa e menos interessante. O trecho mais pacato e belo fica entre o Dique La Ciénaga (província de Jujuy) e a vila La Caldera (província de Salta), algo em torno de 40 km de paz. A distância total entre os centros dos municípios é quase 100 km. O caminho tem como atrativo a passagens por represas, a cobertura vegetal e a calmaria para uma pedalada tranquila.

Acesso: Desde San Salvador de Jujuy: Saída para El Carmen, sempre em frente na RN9. Partindo de Salta, a mesma RN9, sentido La Caldera.

Pedalar em La Cornisa é como passar o carnaval em Curitiba. Uma paz e um sossego de assustar. É de assustar tanto, mas tanto, que no meio da subida encontramos um motociclista que se assustou com uma vaca e, pra evitar uma colisão, caiu. Entendemos o porquê de tantas placas alertando a presença de vacas vacando por ali. Agora, quem avacalhou mesmo, mesmo, foi a chuva.

  • Cicloturista otimista: São apenas uns pinguinhos, pessoal.
  • O mesmo, 5 minutos depois: Isso aqui que eu tô sentindo no lombo é granizo?
  • O mesmo, 10 minutos depois: Como é mesmo essa técnica de torcer a cueca sem precisar tirar?

E veio. Uma chuva de chuva. Lavou de cima a baixo, com requintes de granizo em meio a alta floresta. Salvo a semi-cobertura vegetal, não tinha nada para abrigar ciclista dos baldes d'água. Finda o serra-acima de La Cornisa (1.534 m), a chuva deu trégua e paramos para torcer. Torcer pra melhorar, torcer pra não passar frio na descida e, principalmente, pra torcer a roupa.

O tempo deu uma segurada. Depois da descida-diversão, começou o adensamento urbano de Salta e, consequentemente, muvuca e carro pra todo lado. Os finalmentes, sem dúvida, not-so-bike-friendly. Nos apressamos para aportar no hostel e, no finzinho da tarde, ainda sair para comprar as provisões de comida para o trecho mais difícil - que começaria na manhã seguinte. Sabe quem também saiu pra passear no mercado? A chuva.

2Subida da Cordilheira e Abra Blanca 3 dias 164 km
DIAS 2 a 4 chorillos, santa rosa de tastil, abra blanca, san antonio de los cobres

O projeto original previa cinco grandes ascensões da Cordilheira. A primeira, executamos com dificuldade sucesso. Da saída de Salta até o Abra Blanca foram três dias subindo. Pura, frugal e simplesmente assim: subindo. Descidas não inclusas no pacote. Trechos planos estão fora de questão. Parar de pedalar, só pra descansar. Ou regredir. Do contrário, subindo. Nem um metro de descida. É por projetos assim que nos consideramos altimetricocentristas. Afinal, que sentido tem a distância se o que interessa mesmo é a altimetria? Nossa rotina era assim: consumir uma dieta balanceada de quase de 1.000 m arriba por dia. Servidos?

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Cicloturistas Altimetricocentristas
As primeiras espécies de altimetricocentristas vieram a se desenvolver e sobreviver graças à revolução tecnológica introduzida pelo advento e popularização dos altímetros. Até então, seus precursores, os ciclocomputadorocentristas, se orientavam e caçavam apenas com as medidas de distância fornecidas por primitivos objetos ancestrais (citam-se aqui o echotrestopus e o cateyetomocceros).
Os ciclocomputadorocentristas sustentam a crença na fiel relação entre a distância percorrida e o gasto energético. Costumam alardear em suas fumaças sociais as empreitadas de 100 km ou mais, muito embora não saibam justificar as díspares fadigas entre caminhos de equânimes distâncias. Sofrendo com as vicissitudes de tais jornadas, parte deles tiveram acesso aos chamados altímetros, que traduzem em medidas a distância vertical do solo corrente ao nível do mar. Fazendo uso destes, passaram a entender que é possível avaliar e planejar com maior previsibilidade suas atividades exploratórias. Muitos chegam a conduzir experimentos práticos, demonstrando, por exemplo, que subir duas vezes 500 m é tão cansativo quanto subir 1.000 m.
Em algum momento da existência, ciclocomputadorocentristas tendem a aderir ao altimetricocentrismo. A percepção de que o sentido da trajetória está nos altos e baixos pode levá-los, até, ao extremo cético de adotar a avaliação exclusiva de cotas altimétricas. Fato é que, extremo ou comedido, é comum a um cicloturista adotar certo nível de altimetricocentrismo em sua vida expedicionária¹. Portanto, se ainda não lhe toca este hábito, não se assuste ao ouvir em metros de ascensão a resposta para pergunta que nunca quer calar: quanto falta pra chegar?

(¹) Não pretendemos exaurí-lo com o tema, porém, cabe lembrar que outras culturas se ramificaram da base altimetricocêntrica, como os stravocratas e trocolikescêntricos, dentre outras abordagens não convencionais de medir esforço.

Ultimado (e molhado) o teste em La Cornisa, era chegada a hora de encarar o verdadeiro parque de diversões. Mas antes, um pouco de burocracia. Tomamos um belo atraso com câmbio e chip. No banco, fila gigantesca (à la Bamerindus 90's) para trocar la plata. Numa operadora personal, vencemos vários atendentes impedimentos até obter um duvidoso chip prepago. O sol já comia ciclista assado quando tomamos a saída de Salta (1.200 m).

Pista simples, estrada cheia, sol pelando e, mais uma vez, nada de acostamento. E, sim, só subida. Já eram 14h quando chegamos em Campo Quijano (1.520 m), limite da mancha urbana de Salta. Comemos e dormimos en la plaza por 1h, já sentindo um ventinho que voltava a movimentar o tempo nublado. Como passar a noite ali seria prematuro, seguimos. Os primeiros quilômetros estavam difíceis, virados em obras. Felizmente, logo deram lugar a uma pista larga e com pouco movimento, dando espaço para o bom humor chegar. O calor havia cessado e as paisagens se desnudavam aos poucos, admiráveis.

"Agora vai, né? Agora desencantou a viagem! Bora aproveitar a cordilheira, pilotos ciclistas!"

Voz interior, ignorando os sinais do céu ligeiramente antes do primeiro pingo

E começaram as primeiras gotas. Mas não eram quaisquer gotas: eram gotas acima de 1.600 m de altitude, gotas acompanhadas do inconveniente viento frío das entranhas da cordilheira. Do rodado do pneu no chão, a poeira já subia como barro. A primeira camada de roupa impermeável já estava vestida, mas não deu conta. Chuva e vento andinos foram engrossando, engrossado. Virou uma grosseria que só vendo - quando dava, porque mal se podia enxergar. A primeira, única e final parada, Chorillos (2.100 m), apareceu só pelas 17h. Aí já estávamos completamente encharcados e, ao contrário do dia anterior, com muito, mas muito frio.

O belo terreno defronte à igrejinha, que outrora abrigara cicloviajantes secos em animado campismo (disse, um dia, a internet), estava debaixo d'água. Na perseverança, conseguimos uma dica: a estação abandonada de trem. Mesmo precária, foi a salvação para noite de chuva que não cessou. A lembrança da chegada se resume a todos imediatamente trocando de roupa e recobrando a sensação de pés e mãos dentro do saco de dormir. Frio de congelar até as funções cognitivas:

Du, você que já trabalhou em hotel
O chão da estação era preto de pó. As portas meio presas, as janelas com frestas que encanavam vento frio. A torneira, do lado de fora e descoberta, vertia água barrenta. O banheiro, um grande buraco. Ainda assim, perto de dormir congelando na chuva, era um hotel.

Em certa altura da investigação das instalações, o João descobriu que o Du já havia trabalhado em um hotel. Não perdoou:

  • Du, você que já trabalhou em hotel, como faz pra acender a luz aqui?
  • Du, você que já trabalhou em hotel, como faz pra pedir uma toalha extra aqui?
  • Du, você que já trabalhou em hotel, como faz pra comer abacate aqui?

Daí por diante, viagem afora, todo assunto aleatório era pretexto para interpelar nosso ex-mensageiro. Você que não trabalhou em hotel, continue acompanhando. Se trabalhou, também.

Estava escuro ainda quando, desmontados pela noite de pesadelos com chuva e frio, desmontamos o acantonamento da estação. Não demorou para ligarmos as setas e descobrimos um ponto-chave: a água dos rios estava imbebível em toda a região, dada a lama que corria pelo excesso de chuvas. O caminho era comprar água pra beber - mas, onde?

  • Du, você que já trabalhou em hotel, como faz pra comprar água potável aqui?

Sem qualquer resposta, seguimos viagem para o segundo lote da subida ao Abra Blanca. Pela manhã, a ameaça de chuva continuou assustando, mas não chegou a nos atingir. Na hora do almoço avistamos uma miragem: El Alfarcito (2.800 m), um povoado simpático e bem cuidado, com alguma infraestrutura. Conseguimos água e espaço para preparar um almoço com calma. Conseguimos até um risquinho no sinal de celular, atrás do canto oeste da capelinha. Dois pasos pra direita, às vezes.

Saímos dali com a meta de parar cedo, talvez antes de um novo temporal. A hipótese de chuva na faixa de 3.000 m de altitude, com tanto vento, era desanimadora (e provável). Mais 10 km, mais 300 m cordilheira acima, mais vento contra e aportamos em Santa Rosa de Tastil (3.100 m).

  • Du, você que já trabalhou em hotel, como faz pra conseguir pouso aqui?

O comércio local era inexistente e o vento frio não parava. Com base em relatos anteriores, fomos pleitear um espacinho num galpão de festas - Rancho La Lastilena. Foi a salvação. Não demorou muito e a chuva voltou. Água de beber, camará, só na torneira do banheiro público da vila (que logo fechou). Pelo menos o jantar foi protegido e farto. Mais uma noite garantida.

  • Du, você que já trabalhou em hotel, como faz pra tomar banho de lencinho aqui?

Nasce o terceiro e derradeiro dia da subida. A essa altura, a esperança de viajar sem chuva era mínima. Melhor apressar o paso para cruzar logo o Abra Blanca. Raiou o sol, recolhemos a âncora e, já nos primeiros metros, solucionamos um mistério que era tão mistério, mas tão mistério, que nem quem já trabalhou em hotel sabia!

Fera Ferida
Pra você que esperava uma bela história, esta nota é pra falar sobre ferida no traseiro. Dito isto, cabe preservar a identidade do ferido (distinta daquela esquecida por outro, também preservado, no começo deste relato).
Mal havia se iniciado o 4º dia de viagem e um de nós era acometido de fortes dores cutâneas no sedenho. As ancas do dito já estavam quase em carne viva quando percebemos a origem. De longe, notamos nosso sofrido colega a rebolando ao pedalar. Um erro banal de regulagem: o famigerado banquinho estava acima da altura correta.
Acabara o mistério da ferida nas cadeiras. Talvez tarde demais, tão tarde quanto começara, mas acabara.

Feito o ajuste, avançamos a pedaladas muito lentas. A crise do quarto dia, terceiro de subida ininterrupta, estava pegando. As paradas eram cada vez mais frequentes e as subidas eram miragens de descidas. Ou o contrário. Mas sempre subindo.

"Nada é tão jujuym que não possa pipiorar."

João Amado, o cicloturista assado (ih, foi descoberto)

Poucos quilômetros antes do Abra Blanca (4.080 m), o tempo fechou. Granizo. Obviamente, não havia lugar para se abrigar até o cume (e, no cume, também). Note-se aí as apressadas (e tímidas) fotos, indignas deste marco da viagem.

Do outro lado do cume, uma longa e suave descida até San Antonio de Los Cobres (3.750 m) nos esperava. O corpo nem reconhecia mais o conceito de descida. O sol, outro que vinha rareando, voltou com disposição suficiente para aquecer o ar e até tostar um pouco o couro. E o trecho de estrada que prometia ser de rípio sofrido, como diziam outros relatos, fora recém pavimentado com asfalto planinho em folha. Presentes.

  • Du, você que já trabalhou em hotel, como faz pra dar gracias a la buena suerte por aqui?

Finda a primeira grande etapa da viagem. O clima molhado, o banquinho alto e a água impotável não seguiram à risca o nosso planejamento (que era o certo). Uma rápida tertúlia e decidimos aderir a um hostel e abraçar um dia extra na cidade. Para descansar o traseiro e repensar o roteiro. E banho de chuveiro. Merecido e justo, como diria o outro.

3Puna 2 dias 88 km
DIAS 5 e 6 san antonio de los cobres, aguaditas, tres morros

Day-offs são a expressão máxima do merecido e justo. Adotamos um depois de capengar chegar em San Antonio de Los Cobres com muitas dúvidas de para onde (e se) ir. Ainda tínhamos tempo disponível pra viajar, vontade e preparação. Mas os fatores precipito-climático, hidro-potável e nádego-asséptico pesaram, minando a confiança no nosso ambicioso plano original. Por amor a própria vida segurança, decidimos serrar a viagem, cortando a Puna ao invés de seguir para o Atacama. De quebra, agregamos unas cositas más ao roteiro. E a tal da Puna, mais uma vez, preparou uma bela história.

Bom demais ter um dia de parada. Lavar e regular bicicletas, ir ao mercado, fazer uma refeição decente, botar as roupas sujas e molhadas pra lavar, acreditar que o tempo vai melhorar, acordar pra vida. Dos inúmeros atrativos da pacata Los Cobres, nos chamou a atenção o roteador wifi fixado no pátio externo do hostel:

  • turista, ciclo: Esto no se moja con la lluvia? Como pueden dejarlo acá, sin protección?
  • hostelero: No hay problema, no llueve acá más que 5 minutos. De verdad, hace mucho tiempo que no llueve. Pero vosotros no tienen suerte con las bicis. En esta semana llueve más que todo el año.

Disse o rapaz (que não era o du, mas trabalhava em hostel) pouco antes de mais uma trovoada. A conversa foi o sinal derradeiro (ou a ausência dele, dado o roteador pifado) de que o Atacama não mais nos esperava. Estávamos prontos para pegar -10ºC, mas não -10ºC com chuva.

A muito custo, reunimos informações poucos fiáveis para tentar seguir um trecho abandonado esquecido inóspito que um dia fora parte da famosa Ruta 40. Por ele, cortaríamos o roteiro original até cruzar com o traçado de retorno. A parte dos problemas com o novo roteiro parecia bem resolvida. Nosso ciclista assado parecia melhorar minimamente, repousando de molho na pomada. Mas, e a água?

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Os Mutantes em San Antonio de Los Cobres
Achou que a gente ia falar de show de retro-rock nacional (brasileiro) no meio da Puna Atacameña? Achou errado, Otávio!
A população de San Antonio de Los Cobres tem algo muito especial. Foi descoberta uma mutação genética (estimada entre 10 e 7 mil anos atrás), ainda presente na maioria dos moradores. Um gene específico - AS3MT - com importante papel no rápido expurgo do arsênio (isso é tóxico!) ocorre com maior frequência nessa população do que no resto do mundo. Inclusive, mais do que em outros povos andinos. É uma das poucas evidências comprovadas de mutações da nossa espécie (se você for humano) em combate à elementos tóxicos.
E daí? E daí que esse é o motivo pelo qual ainda existe uma população residente. A água para beber na região tem 20x mais arsênio do que a quantidade considerada segura pelo padrões de saúde humana. Estudos complementares também reveleram altos níveis de césio, bóro, lítio e rubídio.
Algumas tantas pesquisas já foram feitas na região para se aprofundar nesse assunto. Fato é que, o arsênio está entre as substâncias mais presentes em histórias e evidências sobre envenenamento. O Imperador Chinês Guangxu, o Rei Faisal I e o Rei George III tiveram implicações sérias (até causa mortis) por causa dele.

Fonte: NYtimes, ou com mais leveza em Nakedscientists, ou com mais palavra difícil direto com os pesquisadores.

Água ainda era problema césio sério. Encarar água de córrego, às margens das montanhas e mineradoras, numa improvável semana isolada de chuva na Puna? Nem João Xavante, o ciclista mutante. Não podíamos contar com nada de água que não fosse engarrafada.

  • Du, você que já trabalhou em hotel, como faz pra encontrar um frigobar por aqui?

Para a travessia da Puna tivemos o cuidado de marcar um lugar turístico chamado El Mojón, ponto estratégico de acudida em caso de emergência de água. Até ali, uns 37 km, e dali até a movimentada RN52, outros 62 km. Só com a água que pudéssemos carregar, mais a da chuva. Mas isso ninguém queria (nem a chuva, nem a água da chuva).

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Puna Atacameña
Puna é um bioma de pastagens e matagais de alta montanha localizada na Cordilheira dos Andes Central. Estende-se pelo Altiplano do Peru, da Bolívia, do Chile e pelo Norte da Argentina, variando entre 3.000 m e 3.500 m de altitude (além das zonas de neve permanente de 4.500 m a 5.000 m).
A Puna Atacameña é parte deste bioma, com grande parte situada em território argentino, na província de Jujuy. Tem as condições mais áridas dos Andes, dado o solo extremamente salitrado e escassez de chuva, sendo considerada uma das regiões mais estéreis do planeta. Nos locais onde os lagos secaram surgiram as salinas.
Salvo alguns povoados pequenos (ou ruínas daqueles já extintos), só restam San Antonio de Los Cobres e Antofagasta de La Sierra como aglomerações maiores. A população é descendente direta dos Incas em sua maioria. A atividade econômica está ligada diretamente às salinas, ao minério ou à subsistência.
Dentre as diversas formas de se conhecer estão: o passeio do Tren de Las Nubes (a excursão começa em Salta, o trecho de trem mesmo, em San Antonio de Los Cobres), excursões em veículos 4x4 ou vans (saindo das principais cidades da região), passeios de llama (saindo diretamente da Puna, né?) ou bicicleta (e porque não?). Dependendo do organismo, talvez a visita à Puna precise de aclimatação. Para chegar até este altiplano (que já se localiza acima dos 3.000 m) é necessário cruzar a cadeia de montanhas que o cerca (facilmente atingindo 4.000 m).

Acesso: Sendo a Puna Atacameña uma região muito extensa, é limitante indicar apenas um acesso. Se vale a recomendação, o Paso de Jama (Argentina - RN52 e Chile - CH27) tende a ser o de melhores condições (totalmente asfaltado). As cidades maiores com aeroporto na região são Salta (AR), San Salvador de Jujuy (AR) Calama (CL).

Fonte: Alta Montanha, Wikipedia.

Ao contrário dos outros, o sexto dia de pedal começou com muito otimismo. O clima estava ótimo, as condições da estrada eram boas (no wind, no climb) e vínhamos de um dia de recuperação. Tivemos até o turistaço prazer de tirar fotos com llamas adornadas. Era quase fácil a meta de contornar as Salinas Grandes. E eram grandes mesmo.

Chegamos tão cedo a El Mojón (3.500 m) que nem valia acessar o lugar para abastecer a água. Não tinha motivo pra parar, o ritmo bom nos deu tranquilidade para confiar em cumprir os ~100 km e cruzar a Puna naquele mesmo dia.

"Foi só má sorte, esse começo. Nesse ritmo a gente pode até voltar ao rumo do Atacama, ¡si señor!"

Dois ou três ciclistas inocentes, enganados

Otimistas, ousados e radiantes, pegamos um atalho no meio do nada, passando por uma capela no meio do nada. No meio do nada, um arbusto, vegetação solitária de sombra mínima. Era a sombra do dia. Descanso apertado, protetor solar, biscoitaria e alguma dúvida:

  • Tá vendo uma estrada aí?
  • Faz uns 15 minutos que não vejo estrada, e vocês?
  • A última coisa que vi de diferente foi aquele arbusto. Ih, perdi ele.

E, assim como nós e o arbusto, se perdeu o otimismo. Sabe quem comeu ele com areia? Um trio de arromba: vento contra, calor airfryérico e estrada ruim. Estrada essa, aliás, que demorou pra ser achada. Depois um tempo vagando à esmo pela Puna pudemos entender o porque de ninguém mais habitar aquela árida região. Em um pseudo-almoço tardio, paramos nas - segundo o mapa - ruínas de Aguaditas (3.430 m).

Vento salgado, pepas gigantes pura-casca, amendurim desconfortável e torrone meio-duro-meio-borracha.

Lulis, descrevendo o que chamou de pior almoço de todos os tempos

O otimismo? A essa altura estava tomando uma norteña num bar em Salta. A água de beber tinha chego ao fim, o vento vindo da salina trazia ardência aos olhos e peso às pernas, a estrada nos acolhia como uma britadeira. E, finalmente, o clima decidiu mostrar novamente a que veio.

  • Du, você que já trabalhou em hotel, como faz pra fugir de temporal puna abajo e redemoinho puna arriba por aqui?

O dia escureceu mais cedo. Caiam as primeiras gotas do temporal que desde longe se via. A estrada piorava, o vento embrutecia e não se via absolutamente nada de nada ao redor. A velocidade média da pedalada já estava abaixo de caminhar, incompatível com os ~13 km faltantes para o asfalto. O otimismo saiu pra comprar cigarro.

No horizonte, nada... pera lá! Lá distante, um campanário?! Talvez! Talvez a apenas 1 km, mas parecia fugir, vencendo o vento com mais competência que nós. A muito custo chegamos àquele pequeno e inesperado lugarejo. A única família que ali estava nos emprestou o galpão para dormir. Sedentos, compramos todo estoque de água mineral deles.

  • Du, você que já trabalhou em hotel, calma: eles tinham mais para consumo próprio.

Ora, ora, parece que o otimismo foi comprar cigarro justo ali, na precária "tienda" de Tres Morros (3.420 m). Banho de balde e lencinho, janta no chão e finalmente a chuva pôde cair lá fora, sem mais nos assustar. Naquele dia.

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Tres Morros, a Metrópole
Tres morros não existe em livro de história ou site de turismo para ter algo a ser dito. Tres Morros só tem, mesmo, três morros. Num deles, o cemitério, com mais leitos que a própria vila. Tem muito espaço e até slogan: ¡si muero, voy al cerro! (brincadeira, não tem, não). Outro morro protege a vila do vento insalubre das Salinas Grandes. O terceiro tá por aí, ainda.
Um campanário, um pequeno galpão, dois banheiros comunitários (interditados), três casas de adobe e um tanque de água abastecida pela governo. E só. Nem uma árvore, nem um cactus. Nada mais até onde os olhos enxergam. O porquê das várias vilas abandonadas no caminho já deduzimos. O dessa, habitada, tivemos que perguntar. Seu André, patriarca da única família residente por aqueles dias, não quer deixar pra trás o lugar onde seus ancestrais viveram e estão sepultados. Ele cria alguns animais e faz passeios com turistas pela salina.
Para nós, tudo aquilo era mesmo uma metrópole com ares de oásis. Depois de tantas ruínas, de tanto deserto, Tres Morros era improvável demais. Aquele campanário, quando despontou na linha do horizonte, desvelava uma metrópole capaz de prover absolutamente tudo o que precisávamos. Um pequeno sonho ressignificado em uma bolha onírica. Talvez nem esteja mais lá. Se é que algum dia esteve.

Para selar o fechamento poético do capítulo, uma bela frase de nosso hospitaleiro, repleta de significados:

"Saiu o arco-íris, amanhã fará sol."

Seu Andre, equivocando-se

4Quebrada de Humahuaca 3 dias 192 km
DIAS 7 a 9 salinas grandes, abra potrerillos, cuesta de lipán, purmamarca, tilcara, san salvador de jujuy

No último episódio desta nossa saga pelo norte da Argentina, finalmente um pouco de (relativa) calmaria. Não querendo, mas já spoilerizando: nesta rama da viagem finalizamos o cruzamento da Puna, tocamos uma grande salina (no sentido de encostar o dedo, jamais tocaríamos um negócio por ali), voltamos a subir freneticamente a cordilheira e, finalmente, conhecemos uma quebrada ¡mucho! firmeza de paisagem. Isso tudo com espaço para amar e desamar o Paris-Dakar.

Com tempo agradável na cosmopolita Tres Morros, galgamos seu belvedere natural (vulgo "morro 2") para contemplar uma bela vista da extensão das salinas e, porque não dizer, do urbanismo tresmorropolitano. Antes do despertar da metrópole, deixamo-la para seguir em direção ao corredor bioceânico da RN52.

Paranossalegria, em pouco tempo o asfalto estava de volta. Puxamos uma ponta do roteiro em direção ao Atacama para suspirar visitar as Salinas Grandes (3.400 m). Sim, sim: as mesmas que estivemos contornado à distância durante todo o dia anterior. Em se estando lá num verão (de muitas chuvas), pudemos contemplar a calmaria e beleza natural do famigerado espelho d'água (isso sem precisar do truque dos portões do céu).

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Salinas Grandes
É a terceira maior salina da América do Sul. Um imenso deserto de sal a 3.400 m de altitude, com 212 km² de área. Quem visita de dezembro a março pode contemplar o gigantesco espelho d'água, que reflete a cordilheira ao fundo (em destaque, os nevados Chañi y El de Acay).
No encontro da rodovia com a salina há espaço para estacionar e contemplar a vista. Pequenas tiendas com paredes em tijolos de sal adornam o local, onde são comercializados artesanatos e iguarias da região (salame de llama, vinho de Jujuy, etc.). Uma opção para percorrer maiores distâncias são os passeios com llamas ou veículos offroad - ou bike, né?!

Acesso: As Salinas ficam às margens da Ruta Nacional 52 (Corredor Bioceânico), a 72 km de Purmamarca. O caminho em si já é muito interessante, você precisará subir a fantástica Cuesta de Lipán.

Fonte: Argentina Travel.

Tempo quente, bela paisagem, amplidão e calmaria. Dia dos bons, momentos especiais. Mas nos aguardava no caminho, nadamás que o ponto mais alto da viagem. Subida da boa, movimentos espaciais. Da salina, singular e ininterrupta subida de mais uns 1.000 m, pra matar saudade dos primeiros dias. Só que com maior inclinação. E menos espaço, dividido constantemente com os cigüeñeros paraguayos.

Cigüeñeros Paraguayos
Se você está achando que um tipo muito selvagem de ave andina nos ameaçou, errou. Estamos falando de um grande negócio de transporte de veículos usados, vindos do Japão. Aqueles carros nipônicos que você - possivelmente - já viu circulando no Paraguai chegam lá de algum jeito. Esse jeito passa pelo porto de Iquique (Chile), de onde são embarcados em caminhões paraguaios com destino à Assunción ou Ciudad del Este. O negócio é gigantesco e a quantidade de caminhões quebrados pelo caminho, também.
Não que o fenômeno seja "digno de nota", mas vai dizer que não é estranho? Imagine você, pedalando no meio do deserto, quando começam a passar velhos caminhões paraguaios cheio de carros japoneses seminovos com kanjis nos vidros! Não?! Bom, então tá, desculpa.

Finalmente, depois de muito zig-zag cuesta arriba, atingimos o Abra Potrerillos (4.170 m). A vista lá de cima é quase boa, a de uns 500 m antes é muito melhor: dá pra ver todo o caminho, inclusive as salinas ao longe, e, noutro longe, o belo e gélido Nevado de Chañi. Como costume dos Abras, o tempo logo fechou e os ventos apertaram. Fugimos dali para, pouco adiante, dar vazão à descida da lindíssima Cuesta de Lipán. Problema para admirar a vista incrível? Nenhum, o vento contra começou a soprar forte.

Pagou-se todo o esforço da subida. As paisagens e a descida são tão incríveis que só vendo (sorte sua que deixamos fotos e vídeo pra isso). A descida foi tão longa, mas tão longa, que encerramos o dia cansados de sorrir e de não pedalar.

Na muy turística Purmamarca (2.330 m, calcule!), rodamos bastante até encontrar uma hospedagem modesta. Modesta mas coberta - afinal, é mentira que não chove na província de Jujuy. Encontramos um quarto em uma casa de família, no melhor estilo até bicicletas dormem junto. Com direito a chuveiro ecologiconômico: você aciona o registro até que o reservatório se encha (lentamente) de água, liga o sistema de aquecimento até que a água (lentamente) atinja a temperatura desejada, banha seu corpo (rapidamente) por gotejamento e, caso necessário, recomeça o ciclo turismo do banho.

  • Du, você que já trabalhou em hotel, como faz pra tomar banho usando uma caixa de descarga com um rabo quente dentro por aqui?

Acordamos cedo para percorrer (¡en piés!) o Paseo de Los Colorados, circuito no entorno de um dos maiores atrativos da província de Jujuy, o Cerro Siete Colores. Apesar da fama deste último, as muitas colores dos muitos cerros por ali impressionam. Mesmo com tempo nublado (¡cerrado!), valeu cada sapatilhada na areia. Como eles mesmo costumam dizer, a região da Puna/Quebrada é um dos lugares mais parecidos com o solo lunar.

  • Du, você que já trabalhou em hot...
  • Não sei, nunca pedalei na lua, mas isso aqui lembra muito isso aí que eu não conheço.

Após a temática caminhada pelas sendas lunares, seguimos (¡en bicis!) nossa jornada pelo incrível cenário da quase-boliviana região da Quebrada de Humahuaca. Em poucas palavras, estávamos no leito seco de um cânion gigantesco forrado de paredes rochosas multicoloridas. Nas pontas do plano B de viagem, tiramos da manga outro braço de roteiro (na verdade, uma pernadinha) no sentido Norte, antes do retorno final à capital Jujuy.

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Quebrada de Humahuaca, Purmamarca e o Cerro Siete Colores
A Quebrada de Humahuaca é Patrimônio da Humanidade desde 2003 por seu valor cultural na história da humanidade. Integra o Caminho Inca no trecho que acompanha o Rio Grande e seu vale espetacular, desde o nascimento no altiplano desértico e frio dos Andes, até a sua confluência com o Rio León, 150 km ao sul. O vale conserva evidências de sua utilização como via comercial importante durante os últimos 10.000 anos. Foram encontrados restos dos sucessivos assentamentos humanos e outros vestígios de atividades de grupos caçadores-coletores pré-históricos, do império Inca (séculos XV e XVI) e combates pela independência (séculos XIX e XX). O termo quebrada significa rio raso, não navegável, que costuma servir de lugar para campismo, especialmente na América Latina. É facilmente observável nesta região da Argentina, com áreas muito largas e pouco (ou nulo) volume de água.
A pequena cidade de Purmamarca se situa às margens de um rio homônimo, quase em sua confluência com o Rio Grande. Apesar da pequena população residente (2 mil), o volume de turistas que circula ali todos os dias é enorme. Colado na faixa urbana da cidade se encontra a causa desta grande movimentação, um dos atrativos mais importantes da província de Jujuy, o Cerro Siete Colores. Há infraestrutura turística para todos os gostos e preços. Não bastasse a beleza do referido ponto turístico, o centrinho é cercado de montanhas muito impressionantes, a destacar o Cerro El Morado.
O Cerro Siete Colores é uma formação conformada por sedimentos marinhos, lacustres e fluviais depositados durante centenas de milhões de anos. Cada uma das cores correspondente a um grupo de elementos e uma determinada idade, sendo o rosado o mais "atual", de 3 a 4 milhões de anos atrás. Essas montanhas com cores mescladas são vistas em toda a Quebrada, assim como na Cuesta de Lipán. O que chama atenção neste cerro é a conjunção de várias delas. Esse atrativo pode ser visto de vários pontos da cidade. Há também um - muito recomendado - circuito de trekking que o contorna, chamado Paseo de Los Colorados. Vale muito a pena percorrer seus curtos 3 km para admirar as outras montanhas igualmente impressionantes do entorno.

Acesso: O acesso à Purmamarca fica há cerca de 60 km de San Salvador de Jujuy, pela Ruta Nacional 9 sentido Humahuaca. O Cerro Siete Colores fica dentro da cidade.

Contato: Oficina de Turismo de Jujuy.

Fontes: UNESCO, Wikipedia, Argentina Travel.

A contínua (insistente, até) beleza da quebrada firmêza topzêra não seria o único atrativo do dia. Para nossa completa e absoluta surpresa, os ditos caminhões paraguaios foram substituídos pelo, ora vejam, Paris-Dakar. Quê?

  • Eu, que já trabalhei em hotel, explico: desde 2009 o Rally Paris-Dakar foi transferido para a América do Sul.

Devido ao mal tempo (oh, really?), um dos trechos do famoso rally tinha sido cancelado. Enquanto subíamos a Quebrada, veículos de todas as outras equipes (staff e competidores) desciam: caminhões, quadriciclos, carros e motos. Tinha de um tudo ali, menos Paris e Dakar. E assim foi, durante todo o tempo que pedalamos na RN9: uma carreata do Paris-Dakar que parecia não ter fim.

Subida leve e distância curta, logo chegamos ao centro de outra cidade pequena e cheia de turistas, a mística Tilcara (2.500 m). Além da vista privilegiada para a Quebrada, é também ali que fica o sítio arqueológico Pucará de Tilcara, onde um dia houvera uma fortaleza pré-incaica. Não foi difícil achar uma hospedagem bajo costo para largar toda tralha trancada e sair legitimamente turistar por lá.

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Pucará de Tilcara
É um sítio arqueológico formado por numerosas construções de indígenas tilcara, situado estrategicamente na confluência entre os rios Grande e Huasamayo, em um morro com 80 m acima do nível da atual cidade homônima.
Pucará é um sinônimo de forte / fortaleza, função que esta construção exercia. Sua posição era estratégica pois, pela altura e localização, era possível ter uma vista de longo alcance para a Quebrada de Humahuaca, tanto ao norte como ao sul. O lugar também contemplava fins sociais e religiosos, além de permitir o controle do trabalhos dos campos de cultivo ao redor.
Há também um museu arqueológico onde podem ser vistos alguns objetos recuperados desde as escavações. Das construções só restaram alguns registros, sendo a planta atual uma reconstituição. Uma pirâmide foi instalada em um ponto estratégico, embora seja um monumento que não guarde relação com a tradição arquitetônica da região ou dos povos antigos.

Acesso: Desde San Salvador de Jujuy são cerca de 90 km até Tilcara pela Ruta Nacional 9, sentido Humahuaca. O sítio arqueológico pode ser visto antes mesmo de chegar no acesso à cidade, embora seja necessário cruzá-la e chegar por trás do atrativo para visitá-lo.

Fonte: Wikipedia.

O sítio vale o passeio, embora nossa admiração pela paisagem (que nos é muito exótica) fosse maior. Ficamos ali observando a vastidão dos paredões de pedra no horizonte, conformando a Quebrada. Na saída do sítio arqueológico, em uma sala muito apertada, 10 pessoas (e um cachorro) assistiam um especialista palestrar sobre Los Pueblos de la Quebrada.

  • Impressão minha ou a palestra foi mais interessante que a visita?
  • A visita só ficou interessante por conta da palestra.

Treze pessoas e um cachorro, conosco. Todo aquele amontoado de rochas, bem como toda a região e os seres que ali habitaram e habitam, ganharam muito mais significado depois daquela singela fala. Um apaixonado pelo tema vale mais que mil folhetos. No fim das contas e do dia, saímos com um olhar diferente a respeito de quien gana e quien pierde com a realização do Paris-Dakar por ali.

No nono (¿no?) e último dia en bicis, amanhecemos organizando os alforjes sob o já conhecido pré-saudosismo-pós-viagem. O roteiro aliviava: descida leve e quilometragem amigável sob contemplação da Quebrada. Apesar do vento forte, o clima deu uma folga e - talvez inspirado pelos chuveiros ecológicos da região - não derramou nem um pingo.

A surpresa do retorno não foi o exótico, mas o comum. Foi só em León (1.650 m) que começamos a revisitar cenários que nos pareciam familiares. Afinal, levávamos mais de semana sem ver uma árvore repousar à sombra de outra. Verde, ah, verde: estávamos com saudades! Mesmo que acompanhado do exauriente calor úmido, mesmo que seguido do ruidoso cinza urbano, ¡sea bienvenido amigo! Fechávamos este belo ciclo (ciclo-mais-que-turismo) aportando, enfim, onde tudo começou - a capital da província de nome de vovó Jujuy.

  • Du, você que já trabalhou em hotel, como faz pra fazer checkout de viagem sem marejar os olhos por aqui?

Nos dias que se seguiram, a velha guerreira nos carregou de volta, alegre - com bikes, ciclobagagens e lembranças acomodadas como pôde. Nós, por outro lado, ainda não acomodávamos bem as lembranças. Nosso ambicioso roteiro, todo trabalhado na confiança, passou longe de sair conforme o planejado. As dificuldades e abdicações ainda incomodavam, como bolhas no traseiro. O retorno prematuro ainda guardava um sabor salgado de derrota, difícil de lidar como areia olho adentro.

Levaríamos dias, meses talvez, para atravessar verdadeiramente e perceber a beleza de tudo isso. Não só a beleza surreal da Puna e da Quebrada, lugares inegavelmente incríveis que merecem ser visitados e contemplados. Mas de apenas ver o exemplo de pessoas fantásticas em sua simplicidade, que cruzaram nosso caminho ajudando e sorrindo mesmo sob condições inacreditavelmente áridas. Decantar a preciosidade da história da pequena comunidade de três amigos, reescrita literalmente on-the-road pela habilidade conjunta de redesenhar caminhos e contornar perrengues, ponderar limitações e sustentar otimismo, espirrar bom humor e, de quebrada, conversar profundamente com llamas e burricos. Passada a frescura (e passado frio), não há como não nos alegrarmos e nos re-identificarmos com a beleza do conjunto, perfeito em seus cortes e quebradas. Até mesmo a beleza de deixar assim, no ar, uma ponta solta para uma próxima expedição cordillerana cambiante, ¿qué tal?

  • Falando em ponta solta, e essa da identidade esquecida do Lulis, hein? ¡Qué cuento, tío!

Serviços #

Hostel Wawqi. +54(388)422-5657, wawqihostel@gmail.com, facebook. Calle Gral. Paz, 342 - S. S. de Jujuy - AR.

Estacionamento Bienes. Luis, +54(388)422-8755. Calle Gral. Alvear, 1376 - S. S. de Jujuy - AR.

Hostel Alma Mia. +54(387)421-4462, hotelalmamia@outlook.es, facebook. Calle Ituzaingo, 168 - Salta - AR.

Hospedagem Sumaq Samay. +54(387)155-162-271/155-299-812, facebook. Calle Las Vicuñitas esq. Yrigoyen - San Antonio de Los Cobres - AR.

Hostel Waira. Fernando, +54(388)155-741-433, hostelwaira@gmail.com, link. Calle Padilla, 596 - Tilcara - AR.

Expediente #

Texto e comentários majoritariamente por Du. Na mesma levada, fotos e vídeo por Lulis e pilotagem de van por João. Minoritariamente lo mismo, al revés.

Pedalado por du, lulis, joão.

Publicado em 29 out 2019.