Paso Vergara
Sonho é uma coisa fácil: só precisa de alguém disposto a sonhar. A parte difícil é fazer dele realidade. Aqui, no odois, estas duas facetas costumam ser alvo do nosso incansável sonhador, Mr. Heil. E justo por culpa e mérito do nosso paladino abigodado que embarcamos numa fria bela cruzada onírica: atravessar a cordilheira dos Andes pedalando!
Capitaneados pelo Mister, embarcamos num sonho isolado e montanhoso entre a Argentina e o Chile. Entre hermanos e araucanos, entre Andes e pedales, dedicamos sete dias a cruzar o inóspito Paso Vergara - "El Planchón".
- Paso Vergara (El Planchón)
- Paso é um termo usual para as passagens entre grandes montanhas e cadeias como os Andes. O Paso Vergara cruza a fronteira entre a Argentina e o Chile, a cerca de 400km ao Sul de Mendoza (AR) e 200km de Santiago (CL).
- O extremo argentino fica na localidade de Las Loicas (Departamento de Malargüe, Provincia de Mendoza), de onde se pode seguir também para o Paso Pehuenche. O chileno fica no pueblo de Los Queñes, na comuna de Romeral (Provincia de Curicó, Región de Maule). No trajeto de 160km entre estes pontos não há qualquer vila ou comércio, apenas alguns moradores sazonais.
- Na parte mais alta, entre as aduanas, o Paso fica fechado de maio a outubro, dadas as severas condições com o acúmulo de neve no caminho. O clima é seco e o trajeto todo de pedra (rípio).
- O topo do Paso fica aos pés do complexo vulcânico Planchón (4034m) - Peteroa (4095m), gigantes que podem ser vistos por dezenas de quilômetros. No ápice do traçado há um largo pântano, de onde começam a correr dois rios, um para cada nação: Rio Los Ciegos na Argentina, Rio de Vergara no Chile.
- Nos dois lados da cordilheira há paisagens incríveis e inóspitas. Stephen Fabes (Cyclingthe6), cicloturista de carreira, não nos deixa mentir ao ter citado o Vergara como o seu favorito.
- Mais informações sobre as condições de passagem podem ser obtidas com a Gendarmeria Nacional (Argentina) ou com o Servicio Nacional de Aduanas (Chile).
É... sete dias, concentrado leitor, sete. Vamos lá, foquemos apenas na parte boa. Desde subir na bicicleta e conhecer lugares incríveis, até descer dela e dar-se por satisfeito. Não vamos nos ater aos trâmites e traumas aero-rodoviários, minimização de bagagem, farol quebrado, roda torta, embala-desembala bike, cartão não-tão-internacional, arranca-rabo com motorista de ônibus... Não vamos sequer mencionar, amnésico leitor, pois da parte boa já há muito que contar. Sete dias, sete tá de bom tamanho.
Tá certo que assim você vai perder cenas fortes boas, como aquela do Mister comprando suprimentos de viagem no Vea de Mendoza, com 10% de desconto-pra-melhor-idade. Mas não perca o sono por esses trocados, peixeurbânico leitor, os passos importantes da realização desse sonho estão todos aqui, nus e (alguns) crus.
Paisagens incríveis, montanhas emblemáticas, acampamentos aleatórios, ventos uivantes, empurramentos épicos, solzão escaldante, sombras refrescantes... Bem, sombra não vai ter, não. Nem em sonho. Mas, de resto, a parte boa é pura realidade!
Capítulos
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1La ruta 40 1 dia 88 kmDIA 1 argentina, malargüe, bardas blancas
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2Início do Paso Vergara 1 dia 41 kmDIA 2 las loicas, invernada del viejo, mallines colgados
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3Las Tapaderas e Valle Noble 1 dia 41 kmDIA 3 mallines colgados, las tapaderas, rio montañes, risco negro, valle noble
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4O! Paso Vergara 1 dia 41 kmDIA 4 valle noble, termas del azufre, gendarmeria nacional, chile
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5La Cuesta Vergara 1 dia 53 kmDIA 5 cuesta vergara, aduana chilena, las jaulas, los queñes
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6La autopista del Maipo y Rancagua 1 dia 124 kmDIA 6 los queñes, autopista del maipo, san fernando, pelequén, rancagua
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7Santiago de Chile 1 dia 90 kmDIA 7 rancagua, santiago
A melhor forma de realizar um sonho é dar um passo de cada vez. E o primeiro passo da nossa viagem começa em Malargüe, território argentino, num famigerado dia-de-tudo-novo. Dia de adaptação, de entender os costumes do povo, do sol e do vento nessa latitude. Mas, principalmente, dia de subir numa bicicleta e pedalar, coisa que tava demorando a gente adora.
O primeiro dia de viagem já era o último de civilização. Malargamos da pequena cidade rumo ao sul, esperando saborear um dia leve, asfaltado, com apenas uma serrinha no meio. Nada demais para nosso paladar, sommeliers de pirambeiras no Brasil. Subimos a "cuesta del chihuido" tranquilos e logo degustávamos uma infindável descida compensadora.
Tudo indicava um dia tranquilo. Até acabar a descida e, com ela, o asfalto. Num trecho em obras nos deparamos com os primeiros indícios de areiaplanagem, um velho conhecido sistema anti-deslocamento. Nada como um pouco de patinação na areia pra refrescar. Logo aportamos em Bardas Blancas, a penúltima nota de civilização.
Enquanto uns descansam, outros trabalham. Nós com as bardas de molho e a mosquitarada mandando ver. O sol também não dava trégua: pro almoço, seis batatas da perna assadas. Um colega francês, o “dedo”, completou a mesa parada.
O editor achou incoerente interromper uma viagem internacional pra falar sobre o dedo, um francês meio peruano que estava há um ano na estrada e ainda pretendia seguir por mais 4 anos, viajando de carona dando com o “dedo” no acostamento. Por isso não iremos falar sobre ele.
Pela estrada, agora novamente asfaltada, iniciamos a lenta subida pelo Rio Grande. Calma, gaudério leitor, continuávamos em terras argentinas. Esse é apenas o rio que vai nos acompanhar por boa margem do Paso. Nessa mesma hora fomos apresentados a outro fiel companheiro: o vento contra. Contra não, carente. Um vento fresco, que insistia em se exibir e chamar nossa atenção.
Pegados ao vento, avançamos pouco e começamos o jogo do acampa-ou-não-acampa-logo. Tentamos a velha tática de parar numa venda pra cogitar um cercadinho pra acampar. Sem sucesso. Apelamos para o clássico acampamento ao lado da polícia, que lá atende por Gendarmeria Nacional. Sujeitos à autorização do chefe do posto, que só chegaria mais tarde, fizemos uma parada estratégica no Rio Potimalal. Ali testamos o fogareiro e o chuveiro portátil, ali tomamos o primeiro banho andino. Longas pausas revitalizadoras se mostravam boas companheiras, também.
Já era tarde e, como seu lobo não vinha, pegamos a ruta novamente. Logo encontramos outra obra na estrada, alguns operários encerrando o turno. Conversa aqui e ali, ninguém se responsabiliza mas alguns sugerem: adiante tem uma casa quase abandonada. Já sem opção, decidimos que seria lá mesmo. Apesar do receio de que alguém chegasse, passamos o primeiro pouso bem abrigados. O vento dormiu ali, também. Mas passou a noite toda se mexendo.
Cinco da manhã e o Mister já estava de bigode em pé. Aproveitando o companheiro vento assim, quietinho, tão recolhido quanto o humor matinal do Du, vestimos as armaduras e picamos a mula. Só mais alguns quilômetros de asfalto e estaríamos oficialmente no Paso Vergara. Sem volta.
Logo atingimos Las Loicas, último vilarejo do caminho. Ali ficava também o último comércio previsto para os quatro dias seguintes. A senhora que nos vendeu água torceu o nariz com a notícia de que faríamos El Planchón (passito vergara, para os íntimos). Achou que era pouca água, talvez pouca comida e até pouco ciclista. Nós? Achamos uma loucura.
Sem poupar piadas com o nome pitoresco, cruzamos a ponte que encerra Las Loicas. Paso Vergara, aqui estamos. Fomos recebidos pelo rípio, um pavimento que seria outro obstáculo companheiro inseparável. A ilusão de avançar vários quilômetros por dia foi, literalmente, afundando. Percebemos de loonge, pelo espelho, que o Lulis seria o mais prejudicado. Não raramente ficava 100% encalhado no areião. O Du seguia melhor, afundômetro no moderado. O Mister, letrado do caminho, avançava bem com pneus largos e com cravos (nos pneus, epidérmico leitor, cravos nos pneus).
Neste segundo dia começamos a entender melhor a dinâmica do clima local. Ao contrário da confusão climática da nossa terra natal, as coisas no Vergara têm hora pra acontecer (ao menos nessa época do ano). Nossa rotina de viagem logo foi adaptada:
Rotina climática (ou: como a inveja pode matar um curitibano)
- Manhãs de tempo fresco e sem vento, perdurando até as 14h.
- Sol a pino das 14h as 16h, ideal para um acampamento de almoço.
- Luta contra o vento até as 18h.
O acampamento de almoço logo virou o queridinho. Repetindo a agenda do dia anterior, às três da tarde estávamos tomando banho de rio, lavando roupa, cozinhando e tirando uma soneca à espera do sol abrandar. Com clima seco e sol forte, dava tempo de secar bem (roupas, toalhas e ciclistas).
Mais uma vez, a tarde apertou. Nossa previsão era acampamento selvagem nesse trecho, por falta de opção. E que falta! Raramente víamos sequer uma árvore. Já bem cansados e doloridos, esperávamos encontrar qualquer barranco pra nos encostar. Nos animamos com um milagroso amontoadinho de árvores ao longe: Há vida lá! Melhor que isso. Acredite se quiser, sãotoméico leitor, era um camping. Um camping não documentado. Tão inesperado nessa hora que os ciclistas praticamente pararam de funcionar. Mas o camping, sim, estava funcionando.
Fechamos o dia com um senhor alívio para o senhor e os senhorzinhos. O onírico lugar, Mallines Colgados, ficou coroado como um oásis. Jantemo, tomemo banho gelado e se estiquemo.
Mais um dia que concorre ao troféu inóspito. Acordamos na expectativa de um dos maiores desafios da viagem: o arrasta-carga-pela-duna. Pelo menos a noite foi bem agradável (menos pro Lulis, que na expectativa do agradável acabou passando frio). Mr. Heil, sempre muito sincero, amanheceu confessando um pequeno lapso logístico:
- Ô ô ô, rapazes! Achei que tinha esquecido a toalha em Joinville, aí acabei comprando uma toalhinha em Malargüe. Acredita que achei minha toalha e mais uma aqui escondida? Tô com três toalhas!
Para quem estava pesando equipamento, tirando cabo de freio reserva pra reduzir de bagagem, logo vimos que aquela seria a máxima da viagem. Imperdoado, o feito ganhou até canção (e selo) em homenagem. Cantem com a gente!
Três Toalhas (melodia: Pe. Marcelo)
Mr. Heil tem três toalhas / Três toalhas ele tem
Uma é de Joinville / Outra também
E a outraelecomprouemmalargueporqueachouquenãotinhatrazidonenhuma! (very fast)
Três repetições depois, o velhinho saturou e sumiu na frente. Ponto para o exercício motivacional, mais-do-que-necessário para quem estava prestes a dar de cara com as temidas dunas, Las Tapaderas.
E foi tapa pra todo lado. Dois sofridos quilômetros empurrados. Você quer brincar na neve? Que nada, Frozen, você quer brincar na areia! (alguns leitores pais/mães acabam de sorrir) Depois das ditas dunas, voltar à trepedição com média de 9km/h era uma benção.
Dali em diante, nenhuma sombra a vista, nem a prazo. Deu 11h e decidimos: na próxima sombra, paramos. E assim foi, três horas depois encostávamos as bicicletas numa protocaverna com meia-sombra. Sombra essa que já tinha hora pra acabar, estrangulando nosso acampamento de almoço. Sem sombra de dúvida (ou de árvore, ou de rocha grande, ou de qualquer coisa), esse foi o dia assombroso mais não-sombreado da viagem.
Findo o descanso, tínhamos um objetivo: chegar ao puesto DNIT DNV, no Valle Noble. Lá encontraríamos uma garagem compatível com o acantonamento pretendido. Avistá-lo foi uma coisa, chegar lá com vento contra e sol à pino foi outra. Custou longos 5km em 50 minutos. Quase aportando, encontramos uma manada de ciclistas (isso mesmo!) vindo em direção contrária, algo mais inesperado que camping surpresa ou Mr. Heil com três toalhas.
O editor propõem um veto à história dos 10 ciclistas que tinham um corsa no lugar dos alforjes (levando infraestrutura de camping, comida e apoio) e um guia que questionava se faltava muito para (!) Malargüe!!! Haja vista tamanha irresponsabilidade, o editor sugere algo na linha "E o dia terminou bem, sem sombra de vivalma.".
E o dia terminou bem, sem qualquer sombra de vivalma nas redondezas do belo e paradisíaco Valle Noble. Bonito, muito bonito mesmo, o lugar! Espia as foto!
O dia dentre os dias, o objetivo dentre os objetivos. Alçar a pântano charneca Vergara, no limite entre a Argentina e o Chile. Chegar ao ponto mais alto da viagem para, enfim, cruzar os Andes e desbarrancar-se Chile adentro.
As paisagens só foram melhorando, hora após hora. O relevo andino ficou mais acentuado, a estrada menos arenosa. As sombras, definitivamente, evadiram de lá há décadas. Acompanhando agora o Rio Valenzuela, ascendemos em direção ao pacífico na companhia do vento contra argentino, pontualmente britânico. A muito custo chegamos às Termas del Azufre, um espaço de lazer (longínquo, é verdade) que fora fechado pela vigilância sanitária. Nosso acampamento de almoço estava a salvo.
Fechado, mas não morto, apesar do cheiro de azufre enxofre. Lulis, etimologista, nos explica: a denominação água termal vem do fato da água termalcheiro, mesmo. Ainda assim, encaramos o banho. Rebatizamos o lugar como termas de olor muy malo con aguas de color muy feo. O cenário impressionava, com o vulcão Peteroa no plano de fundo. Relaxamento merecido e justo, que só não durou mais porque não dava pra aguentar o cheiro. Da água.
Como não só de enxofre vive um homem (não nós, pelo menos), seguimos em direção à aduana argentina. Estávamos preocupados, apressando o passo para atravessar a aduana antes das 17h. Era isso ou sentar e esperar até as 8h do dia seguinte. No fim sobrou tempo, considerando a pressa do fiscal argentino em nos despachar dali. Burocracias à parte, logo estávamos oficialmente em lugar nenhum: saídos da Argentina, mas sem dar entrada no Chile.
Nem tão rápido assim, batmá. Os 8km faltantes para o marco da divisa não sairiam barato. Muita subida, estrada arenosa e, lógico, um vento como nunca antes visto na história desse país (ou seria daquele? ou seria nenhum?). Como se não bastasse, nosso roteirista conseguiu encontrar, no único desvio de todo o Paso Vergara, uma opção pior.
O editor ficou possesso só de lembrar. Faz questão de publicar a história, pra ver se o roteirista aprende alguma coisa.
O desvio percorrido se afasta da cordilheira, com menos altimetria. O não-desvio, por sua vez, apenas evita um gigantesco túnel de vento contra entre duas montanhas enormes! Pra encurtar a história e alongar o caminho, o lado ruim rendeu apenas sofridos 1,5km em 30 minutos infindáveis.
Superado (ou quase) esse assunto, restavam exaustivos 5km até a divisa. Com o sol quase se pondo, finalmente chegamos ao marco. O ponto mais alto do paso é um lugar paradisíaco e curioso. Culmina em um pântano que dá origem a dois rios, correndo um para cada nação. Clima e vegetação, até então muito secos, dão lugar a uma extensa grama verde. Um pequeno abrigo de pedra é o acalento de quem pernoita por ali.
Boa noite, Chile. Boa noite, Argentina. Boa noite, nenhum. Oficialmente estávamos em nenhum.
O dia nasce no cume do Vergara e quem está ali, de olho no movimento? A resposta não é o gaúcho e nem o cachorro da primeira foto, mas sim El Planchón (4.034m). Ele domina tanto a quebrada que não raramente o caminho é chamado de "Paso El Planchón".
Descansados, nos dávamos conta de que estávamos no ápice do sonho. Após a célebre sequência de fotos no marco da divisa, seguimos quase flutuando pela charneca Vergara até o início da descida. A paisagem que se descortinou nas horas a seguir pode ser resumida em:
Qualquer lugar para que se olhe tem potencial de emoldurar uma foto top 5 da viagem.
O trecho ocidental do vergara é lindo - e muito mais abrupto. Para se ter ideia, a altitude que ganhamos percorrendo 150km desde Bardas Blancas, perdemos em apenas 20km do lado chileno. Só até a aduana foram 800m morro abaixo.
O editor vê importância em lembrar dos fiscais da aduana chilena, muito atenciosos. O Chile é rigoroso quanto aos produtos de origem animal e vegetal em suas fronteiras. Se você tem comida, não pode dar o famoso migué de assinalar "não" na declaração porque "é só uma barrinha de cereal". Nem que seja só um pacotinho de granola. No nosso caso, ela mesma foi barrada por não atender a rotulagem exigida (mesmo fechada). Tudo bem, ao invés de retê-la, liberaram para consumirmos ali mesmo. Ainda nos fizeram companhia e deram boas dicas do trajeto vindouro.
Horas a fio de descida e a paisagem começa a mudar. Depois de dias à seco, reencontrávamos árvores, sombra e umidade. Acertamos de descer no domingo, dia em que a rota fica lotada de turistas fazendo piquenique às margens do Rio Teno. Foi ali mesmo que fizemos o nosso último acampamento de almoço.
Tarde adentro encaramos os últimos quilômetros do Paso em uma estrada já muito melhor (ainda que de terra). Finalmente, depois de dias sem ver uma vila ou qualquer forma de comércio, chegamos ao Camping Tres Palos, em Los Queñes. Para comemorar o retorno ao sistema mercador, compramos duas tortillas. Matamos ali mesmo, esperando vagar um slot no agitando camping. O sossego, assim como o vergara, já era.
O climão de fim de Paso começava tomar conta de los tres. Nossa viagem acabaria neste dia, em Curicó, não fosse por uma comunhão de motivos. Somamos a vontade de pedalar, o dia reserva sobressalente e a preguiça de estragar as bicicletas no ônibus. Resultado? Santiago do Chile, aí vamos nós!
A Ruta 5, nosso caminho até a capital, é o que se pode cunhar "espaço para pedal hermético". Sem subida, sem descida. Sem curva pra esquerda, sem curva pra direita. Sem vento. Sem mais com o que se preocupar ou reclamar, iniciamos uma discussão fitosófica ao observar produtos da economia local.
- Eles fazem caixa de madeira pra quê?
- Pra guardar madeira.
(25 km depois)
- Pra guardar madeira dentro da caixa de madeira?
- Pode ser. Mas uma caixa de madeira vazia, não guarda madeira?
- É, sendo de madeira a caixa, é uma forma de guardar madeira também.
(20 km depois)
- Então uma caixa de madeira, mesmo vazia, guarda alguma coisa.
- Pedala, confúcio, ou te guardo em uma.
De volta à civilização, tivemos que abrir mão do queridinho acampamento de almoço. Pena, estávamos nos acostumando ao 3R: Regime de Risoto Rústico. Os simpáticos chilenos nos indicaram, por ironia, um restaurante peruano. Nós, peruistas de primeira viagem, pedimos peixe. E quedêlhe o cozimento? Nos perdoem os amantes de ceviche, mas o peixe de peru cru não desceu tão bem quanto a estrada da véspera.
De almoço um pouco atravessado, seguimos pela rodovia hermética até Rancágua. A impagável dica de um frentista nos levou ao justo e bem cuidado Hostel El Parón. Entre radiantes e cansados, usufruímos de banho quente e cama limpa depois de tão inóspitos dias. Que venham bons sonhos, que venha a tacada final.
Amanhecemos sem pressa em chegar. Menos de 100km nos separavam da transição de cicloviajante bruto para viajante com bagagem frágil.
A estrada mantinha o sabor do dia anterior, com algumas notas acentuadas de restrição à presença de ciclistas.
A existência de tais avisos havia sido levemente ignorada a fim de evitar o pânico. Mas agora, que já não tinha mais como fingir que não viu, parecia uma boa hora pra sair da via expressa.
Entramos em São Bernardo para sair do caminho do pedágio urbano de Santiago. Seguimos sentido centro, cruzando lentamente as províncias limítrofes da capital chilena. No caminho encontramos um cluster de bicicletarias, informação útil para quem logo precisaria embalar as bikes uma última vez na viagem.
Chegamos a Santiago sãos, salvos e realizados. Mal acabara a viagem e as notas de saudosismo já despontavam. Como já alertavam muitos amigos viajantes:
Conheça o Chile, a Argentina, e você estará comprometido para sempre. Não resistirá à primeira oportunidade de voltar.
A Santiago que havíamos deixado há alguns dias, ainda em ônibus, parecia a mesma. Nós, nem tanto. Nas graças (e gracinhas) da cruzada dos cavaleiros de duas rodas, proclamada por Sir Heil de Joinvilot, havíamos realizado um sonho. Com olhos mareados e coração sorrindo, perguntávamos se era mesmo verdade, se havíamos conseguido levar até o final, se caixa de madeira vazia guarda madeira. E a resposta parecia ser a mesma. Um sonho guarda o que você quiser.
Serviços #
Camping Tres Palos. (+56)9478-4489, link. Av. Freire, s/n - Los Queñes, Romeral - Chile.
Hostal El Parón. Mari. (+56)7275-8550, link. Av. San Martín, 135 - Rancágua - Chile.
Expediente #
Sonho, levante e roteiro por Heil (adaptado de Daniel Peig), texto e vídeo por Du e Lulis, fotos por todos e todos por um.
Pedalado por du, lulis, heil.
Publicado em 15 dez 2015.