Aparados e Serra Geral
Viajar de bicicleta é como fumar bituca de cigarro. Bom, pensando bem, não é, não. Esquece, tabagístico leitor.
Tá, tá, vamos lá. No fundo ambos têm algo em comum: precisam de alguém que acenda. Nesse ponto temos a sorte de contar com Mr. Heil, um roteirista de bigode e espírito inquietos. E foram estes experientes fios grisalhos que nos conduziram a explorar, mais uma vez, as impagáveis belezas do relevo sulista.
Quatro dias admirando os esplêndidos cânions e serras encravados nos limites da Serra Geral, topográfico leitor. Rocinha, Fortaleza, Itaimbezinho e Faxinal, cada um com seus entalhes e encantos. Uma paisageria tão catarina quanto gaúcha, tão bela quanto imponente. Vale cada vale, valeu cada dia.
Pouco tempo? Sempre. Pouca bobagem? Nunca. Esperamos de bigode e coração, querido leitor, que as histórias e imagens aqui compartilhadas divirtam e inspirem bons momentos - e boa viagem.
Capítulos
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1Um dia de muitas sagas 1 dia 80 kmDIA 1 praia grande, cachoeira de fátima, jacinto machado, ermo, turvo, timbé do sul, rocinha
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2Serra da Rocinha 1 dia 62 kmDIA 2 rocinha, mirante da rocinha, são gonçalo, ouro verde, cambará do sul
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3Cânion Fortaleza 1 dia 52 kmDIA 3 cambará do sul, parque nacional da serra geral, cânion fortaleza, trilha do mirante fortaleza, trilha da pedra do segredo e tigre preto, cambará do sul
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4Cânion Itaimbezinho 1 dia 51 kmDIA 4 cambará do sul, parque nacional de aparados da serra, trilha do cotovelo, cânion itaimbezinho, trilha do vértice, serra do faxinal, praia grande
Certamente essa não foi a primeira vez que iniciamos uma viagem pedalando um carro antes das bikes, multimodálico leitor, mas foi a estreia da nossa cara de paisagem na famosa Recepção de Laguna. Conhece? Um espaço democrático de celebração da diversidade dos condutores brasileiros. Todos unidos num só bloco da BR-101 por três horas (com sorte) independente de cor, classe e nacionalidade do carro.
Participando deste (não) movimento, pudemos analisar com muita calma as bicicletas, o planejamento do pedal, as bicicletas, o bigode do Mr. Heil, as bicicletas... Só não passamos mais tempo engarrafando do que pedalando, afobado leitor, porque a noite (ah, a noite!) é uma criança.
Meia tarde havia passado quando finalmente abancamos nossos selins. E, mesmo tarde, partimos numa cruzada de longos 83km de Praia Grande a Timbé do Sul. Com todo esse notório atraso e um céu que prometia mais atraso, não deu outra: no meio do caminho tinha uma serra, no meio da serra um temporal. Meia hora depois, à sombra de alguns pingos, começamos o rafting rumo à Jacinto Machado.
A essa altura do atraso roteiro, nosso gestor de operações coçava o bigode, preocupado com a chegada no camping. Pelas contas, bateríamos à porta do Poço do Caixão depois das 22h. O medo não era pelo nome, mas por incomodar o dono. Do camping, não do caixão.
- Telebrás (ou a saga do cartão telefônico)
- Pasme, contemporâneo leitor, mas tivemos a arcaica ideia de comprar um cartão telefônico para avisar o Dr. Caixão. Anoiteceu em Ermo enquanto íamos pra lá e pra cá atrás de um pedaço de plástico que nos permitisse usar um orelhão (se o encontrássemos, se ele funcionasse).
- Meia hora depois, atormentados pelo descaso com uma tecnologia outrora tão próspera, percebemos que um outro pedaço de plástico e silício poderia, a custo similar, resolver a situação. A tela brilhou, números foram digitados, o verde foi apertado, e em instantes havíamos notificado Sr. Poço do nosso atraso.
- Sim, o pressuposto "ligar do celular é muito caro" nos cegou a tal ponto, inacalentável leitor, que ficamos correndo atrás do rabo até desmontá-lo. Caro saiu o tempo que perdemos na tentativa de estabelecer uma comunicação vintage.
Atraso comunicado, camping garantido. Com faróis acessos e pneus calibrados, seguimos até Timbé do Sul. No asfalto, observávamos cientificamente a regeneração do coeficiente de arrasto. O pedal noturno induzido foi encarado sem muita luz e sem maiores surpresas. Não tão organizado quanto um tag night, mas tão proveitoso quanto.
- Coeficiente de Arrasto Autorregenerativo
- Coeficiente de Arrasto (CA) representa a soma das forças que atuam de forma contrária à direção do movimento¹ de uma bicicleta, como o atrito com o solo e a resistência dos ares³. Em suma, o CA mensura o quanto o vivente sofre (se arrasta) para se manter pedalando (ou não).
- A redução do CA se manifesta na depleção das forças contrárias (como nivelamento de pista e vento favorável). Contudo, estudos recentes demonstram que o CA tende a se auto regenerar, restabelecendo níveis usuais de forma autônoma.
- Exemplifiquemos. Um vivente pode calibrar os pneus e perceber a melhora imediata de rendimento (redução do CA). No entanto, após algum tempo de pedalada contínua, a melhora deixa de ser percebida e o indivíduo retorna à condição de arrasto (regeneração do CA).
- Em alguns casos a regeneração pode superar os níveis iniciais, caracterizando agregadores como o CAQ (coeficiente de agarro de quatis) e o DED (deixa eu dormir).
(¹) Quando a bicicleta se move, claro.
(²) Isso não é uma nota.
(³) Todos eles.
O dia anterior foi duro, adamântico leitor. Nem mesmo a janta saiu depois da toada da dupla catarinense partida tardia & pedal noturno. E a recuperação soava mal: uma grave Serra da Rocinha pela manhã, seguida de um vibrato vespertino até Cambará do Sul.
Para nós, uma meta nova: Vencer, numa sentada, 1.000m verticais em estrada de pedra. E sem reclamar, pois muito se dizia por ali de uma pavimentação que logo acabaria com o ar bucólico. E valeu cada pedra suada. É a velha história da serra: o cenário é totalmente dependente do sentido, pois a velocidade - seja baixa ou alta - nos permite curtir curva a curva de forma diferente.
- Slackline Advanced
- Numa das lentas curvas da serra avistamos uma slackline presa em uma grande árvore e em um... caminhão. Não, suspenso leitor, não era um caminhoneiro praticando slackline. Estava mais pra um caminhão praticando bungeejump. Beijando a pirambeira, a fita o impedia de rolar Serra da Rocinha abaixo. Bicicletas ao centro: Agora!
Entre subidas, curvas e surpresas, o apoio popular ocasionalmente nos animava:
- Cêis tão louco!
- Cêis são macho!
No cume da Serra, um belo mirante na casa dos 1200m de altitude. Dali observávamos quase todo cenário da saga catarinense do dia anterior. E vislumbrávamos o que nos esperava planalto gaúcho adentro.
Planalto adentro, pedalamos altos e baixos. E vislumbramos o que não esperávamos, também:
Veado é perseguido por cachorro perseguido pelo dono que perseguia javali que perseguia suas vacas.
Haikai? Sonho? Notícia do G1? Não, onírico leitor, aconteceu. Sentados, vimos um por um sair do mato e cruzar a estrada. Ao menos até o dono, o resto é história dele. Ou não. Mas se for sonho, melhor não perseguir o significado.
O almoço tardio saiu no fio do bigode do guia, que já rodara estas paragens: Xis do Baixinho. Baixa gastronomia de ótima qualidade para dar ânimo nos últimos quilômetros rumo a Cambará do Sul, capital da terra dos cânions. Logo estávamos devidamente acampados, sonhando perseguir os objetivos vindouros - o cerne da viagem.
Agora sim, um dia mais leve. Um autêntico bá-tchê volta, livre de alforjes e preocupação acampísticas. Nem por isso livre de serras e temporais surpresa.
Depois de um merecido café da manhã, pegamos o único acesso ao Cânion Fortaleza - um bom trecho de asfalto e um pouco de terra nos finalmentes. A estrada é recheada de sobe-e-desce, mas entrega uma paisagem que compensa.
- Cânion Fortaleza
- Do mirante principal se vislumbra o grande paredão de 7,5km de extensão, 1,5km de largura e quase 900m de profundidade que forma o Cânion Fortaleza. Poeto-tecnicamente falando, ficamos de frente para uns dos mais magníficos e imponentes acidentes geomorfológicos do Brasil. A beleza é realmente impressionante, distribuída entre paredes rochosas, densa vegetação e extensas quedas d'água. A trilha de 1km que parte do estacionamento ao mirante é um atrativo à parte.
- Outra boa pedida por ali é a trilha da pedra do segredo, 3km (ida e volta), que passa pela belíssima cachoeira do tigre preto. O segredo do monolito de 5m de altura apoiado em uma pequena base rochosa não é apenas seu equilíbrio, mas a incrível vista exclusiva do cânion. Com um bom tempo se pode conhecer tudo em uma caminhada só: percorrer toda a borda do cânion entre o mirante principal e a pedra do segredo, algo no total de 10km.
Acesso: O Parque Nacional da Serra Geral, onde está localizado o cânion, ainda não tem infraestrutura para receber turistas, apenas uma guarita de controle. Para chegar lá só tem um acesso, saindo do centro de Cambará do Sul - há sinalização na cidade. A estrada, quase toda asfaltada, termina na portaria do Parque.
Fontes:
Guia Quatro Rodas Brasil 2012
CPRM. Link
Mapa Turístico Aparados da Serra e Entrono, ICMBIO. Link
Da guarita direto para o mirante, abandonamos os cavalos no meio da trilha e começamos um rápido trekking. E não é que o lugar é tudo o que dizem e mais um pouco? A vista é incrível, intercalando paredões, mata, cachoeiras e rios. Quem também gosta muito de lá é um graxaim louco de esperto - expert em roubar fruta da mão de turista desavisado. Não da nossa, na certa pra ele ciclista também é selvagem.
Nota de diálogo formal sobre o Cânion
- Lulis: Mas como que é o nome dessa formação, Mr, o Sr que é geógrafo?
- Heil: Geografia, né?
Wind was blowing, the skyes were not so blue e um trio de ciclistas ainda queria conhecer a Pedra do Segredo. Rodamos um pouco até a entrada trilha, cavalos-ao-mato e pernas-pra-que-te-quero. As placas lembravam outro atrativo no caminho, a Cachoeira do Tigre Preto. Não deu outra: a água veio do céu preteando para três turistas tristes. Na moitinha, esperamos o toró passar e ainda trilhar mais um pouco dos belos segredos da Serra Geral.
Fim de tarde e mais uma vez nosso South Brasil Tour Guide Moustache deu uma dentro. Macarrão de acampamento? Nada. Conhecemos uma galeteria muito caprichada, farta em salada orgânica plantada ali mesmo. E não estamos falando só de galeto e salada: põe uma sopa de agnoline e uma polentinha com queijo na chapa aí!
Findando a viagem, revenântico leitor, uma gran reserva para o último dia: Cânion do Itambezinho. Não menos importante, apenas questão de logística.
Situado no caminho usual entre planalto e litoral, a movimentação no Itaimbezinho é bem diferente do Fortaleza. Muito mais gente, tanto visitando quanto trabalhando. O graxaim, decerto tímido, não deu as caras por aqui. A beleza? Descomunal. Mas não caia na tentação de definir o melhor cânion, seletivo leitor: cada um tem suas graças, cores, elementos e singularidades. Comum a ambos é a natureza da imperdibilidade.
- Cânion Itaimbezinho
- Os paredões verticais aqui são de quase 800m de profundidade e 6km de comprimento. Contrariando os outros cânions, Itaimbezinho (do tupi-guarani, pedra afiada) tem em suas margens uma densa vegetação de araucárias, sem dúvida um diferencial na paisagem. É possível visitar os dois lados do cânion, incluindo o vértice, sem muito esforço. A caminhada mais longa - e bonita - é a trilha do cotovelo, 3,5km até o final, com vários mirantes impressionantes. Recompensadora também é a trilha do vértice, apenas 700m para conhecer o ponto de partida do cânion e admirar as extensas quedas d'água Véu de Noiva e Andorinhas.
Acesso: O Parque Aparados da Serra, onde está localizado o cânion, oferece boa infraestrutura para o turista. Há sinalização nas trilhas, centro de visitantes, banheiro, estacionamento, etc. Para chegar lá é possível ir: via planalto - Cambará do Sul, seguindo a sinalização a partir da cidade, sendo quase todo trecho em saibro trafegável; via litoral, saindo da BR101 sentido Praia Grande e, depois do município, subindo a Serra do Faxinal - um mix de asfalto e estrada de terra.
Fontes:
Guia Quatro Rodas Brasil 2012
CPRM. Link
Mapa Turístico Aparados da Serra e Entrono, ICMBIO. Link
Mais uma vez a bicicleta deu uma boa mão. Percorremos pedalando toda a trilha principal, do Cotovelo. Vários pontos de observação, pra turista nenhum botar defeito. No final, um pseudo-natural anfiteatro voltado para a grandiosa obra do cânion abre espaço para uma relaxada.
Retornamos para fazer a outra trilha, do Vértice, e visualizar cânion pelo outro lado. Agora sem bicicleta, demos os últimos passos para cumprir o objetivo principal da viagem. Defronte à típica cachoeira véu de noiva, demos por encerrada nossa cruzada canionana.
Já acabou?
Muita calma nessa hora, ansioso leitor. Lembra dos créditos de altitude comprados lááá na Serra da Rocinha, no primeiro dia? Hora de gastar. Ali estava a Serra do Faxinal, num estágio de pavimentação mais adiantado que a primeira (iniciado, ao menos). Logo aportamos novamente em Praia Grande, agora sim encerrando o ciclo do pedal. No carro, já saudosos, passamos (devagar) a conhecida Laguna de águas paradas, estresse amenizado pela carinhosa acolhida litorânea de Dona Lídia. Lá parados, já levávamos a saudade das boas companhias e das lindas paisagens estampada na cara.
Serviços #
Hostel Nativos dos Canyons. (48)3532-0078, 9163-5988, link. R. Olívio Margutt, 146 - Praia Grande - SC.
Camping Poço do Caixão. (48)3536-1099, link. Estrada Geral, s/n, Rocinha - Timbé do Sul - SC.
Pousada e Camping Pindorama. (54)3251-1225, link. R. João Francisco Ritter, s/n - Cambará do Sul - RS.
Galeteria O Casarão. (54)3251-1711, link. R. João Francisco Ritter, 247 - Cambará do Sul - RS.
Expediente #
Letras por du & lulis, imagens por lulis & du, traçado por heil & du, paisagens pordeusdocéu.
Pedalado por du, lulis, heil.
Publicado em 23 jul 2015.