Misiones

4 a 10 jan 2013 7 dias 477 km

No decênio do odois, trocamos o tradicional "relembrar" por um audaz "renovar". Um renovar que não é sobre bicicletas no teto do carro - isso seria sobre viajar para longe de casa. Também não se refere ao nuestro estraño portunhol, embora esta seja a primeira cruzada internacional do odois. En verdad, mudaram os rios, cânions, mirantes, trilhas e pedreiras. Dessa vez você não vai encontrar nenhum deles. Esta expedição teve um objetivo distinto: conhecer - e pedalar! - uma história. Registros de sonhos antigos, contados por caminhos e ruínas: as Missões Jesuítico-Guaranis.

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Missões Jesuítico-Guaranis
Durante os séculos XVII e XVIII, a Companhia de Jesus fundou cerca de trinta reduções em terras então ocupadas por indígenas, a maioria Guaranis, situadas nos atuais Paraguai, Argentina, Uruguai e Brasil.
As reduções eram aldeamentos criados para facilitar o trabalho de evangelização dos nativos (as missões), além de assegurar o domínio Espanhol em áreas disputadas com Portugal. Tornaram-se verdadeiras cidades urbanizadas e auto-sustentáveis, com habitações, igreja, colégio, asilo, mercado, oficinas de todos os tipos e vastas áreas de lavoura e criação de gado. Há relatos de que a população de uma redução podia chegar a 20 mil indígenas guiados por dois ou três jesuítas.
A experiência missioneira é citada como a expressão de uma sociedade igualitária, um utópico pré-comunismo cristão, embora hajam questionamentos sobre a subjugação dos nativos e de sua cultura. Sua decadência inicia com a Guerra Guaranítica, ocasionada pela revolta dos indígenas contra a migração obrigada pelo Tratado de Madri (1750), e posterior expulsão dos jesuítas dos territórios espanhóis (1767).
Os vestígios dessa história estão hoje espalhados por três países. No Brasil são conhecidos como Sete Povos da Missões, tendo Santo Ângelo como ponto de partida e as ruínas de São Miguel como referência. Na Argentina são quatro reduções, sendo San Ignacio Mini a mais conhecida e visitada. No Paraguai restam dois grandes sítios históricos, em melhor estado de conservação: Trinidad e Jesús de Tavarangué.

Inspirados no roteiro peregrino "Caminho das Missões", pontuamos nosso caminho pelas principais ruínas missioneiras, traços desvanecidos do que um dia foi a "República Guarani". Nove sítios históricos, sete dias. Para tanto, trespassamos as bordas do Brasil, no noroeste gaúcho; da Argentina, na província de Misiones; e do Paraguai, na província de Itapúa.

E enquanto você se pergunta "Por quê?!", inquieto leitor, tomamos um atalho nas palavras do historiador Clement McNaspy para esclarecer a motivação por trás desta missioneira expedição:

"Como toda a epopéia das Reduções foi uma empreitada especificamente religiosa e evangelizadora, me parece mais autêntico, mais enriquecedor e até mais histórico, visitá-las numa atitude de peregrinação."

Clement McNaspy

E assim, crentes de que a atitude de bicigrinação compartilha esse mérito, iniciamos nossa própria epopéia.

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Referências
Essa missão foi inspirada, desfrutada, justificada e explicada graças a:

Livros

DALCIM, Ignacio. Fascínio e mistério nas ruínas das missões. Passo Fundo: Berthier, 2010. Link
HEBBLETHWAITE, Margaret. Bradt Travel Guide Paraguay. Guilford: The Globe Pequot Press, 2010. Link
IPHAN. Placas de orientação distribuídas nos sítios arqueológicos.
LUGON, Clóvis. A República Guarani. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
SIMON, Mário. As missões dos sete povos. 3 ed. Santo Ângelo: FuRI, 2013.

Filmes

THE MISSION (1986). Com Jeromy Irons e Robert De Niro no elenco, conta trechos da história desde as primeiras missões do Guairá até a expulsão dos Jesuítas. Link
BLACK ROBE (1991). Sobre a presença jesuíta na América e as relações conflituosas com os nativos, embora no contexto do Canadá. Link

Sites

Turismo Argentina. Link
Ruta Jesuítica Paraguay. Link
Caminho das Missões. Link

Mapa & Tracks

Vídeo

1Santo Ângelo e São João Batista 1 dia 74 km
DIA 1 santo ângelo, entre ijuís, são joão velho, sítio arqueológico de são joão batista, estrada do carajazinho, esquina ezequiel, rincão dos moraes, sítio arqueológico de são miguel arcanjo, são miguel das missões

Um dia viajando de carro, uma noite pra descansar - até porque pedalar de carro cansa demais. Amanhecemos prontos para iniciar a cicloperegrinação.

O marco zero do roteiro é a Catedral Angelopolitana. Apesar de contemporânea, a igreja esboça o quadro do que está por vir. O vermelho desbotado da pedra-grês domina o cenário que, na ocasião, serviria de palco para uma formatura. Nada que não tivesse ocorrido três séculos atrás, embora as especialidades ensinadas ao indígenas fossem muito distintas: carpintaria, escultura, pintura, música... Bem, talvez nem tão distintas assim.

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Santo Ângelo Custódio
Fundada em 1706 pelo Pe. Diogo Haze, esta foi a última missão a ser erguida dentre os sete povos. Sua igreja era um templo monumental, capaz de abrigar cerca de 5 mil pessoas. Destruída durante a Guerra Guaranítica (1754-1756), hoje restam apenas alguns vestígios expostos em uma escavação na praça central, ao lado da catedral atual.
A atual Catedral Angelopolitana foi iniciada em 1929 e construída em etapas ao longo do século XX, sobre os restos de uma pequena capela erguida por repovoadores em 1888. No seu pórtico estão imagens dos padroeiros dos setes povos: São Lourenço Mártir, São Luiz Gonzaga, São Miguel Arcanjo, São João Batista, São Francisco de Borja, São Nicolau e, no nicho central, a imagem de Santo Ângelo Custódio.
Santo Ângelo é hoje o maior município da região gaúcha de missões, considerado o portal de entrada para visitação turística da região. Conta com diversas lojas de artesanato e opções de hospedagem.

Quinze quilômetros adiante, muito sol na mula, nenhuma sombra por perto, estabelecemos contato com um nativo. Não, não era um Guarani. Era o Vinicio, cicloturista da região. Dividiu algumas histórias de atleta das missões e nos presenteou com simbólicas nectarinas de boa viagem. Partiu pensando: esses aí vão torrar tudo nessa viagem.

Sábio Vinicio. Mais quinze quilômetros e chegamos torrados ao primeiro sítio arqueológico, São João Batista. Fomos muito bem recebidos pelos vigias, verdadeiros contadores de história. Aprendemos a primeira tática para aliviar o calor desproporcional da região:

Quanto maior o calor, mais quente deve ser a água do chimarrão.

Absurdo? Talvez. Mas estava tão quente ao sol, e tão quente o chimarrão, que o corpo se confundiu e acabou refrescando. Não deve funcionar sempre. Mas nem só de calor fala o homem. Nos contaram que a Igreja Católica preserva um elo tênue, clérigos visitam as Missões periodicamente. Na sombra quente, nos perguntávamos: ainda haveriam vestígios enterrados? Nos diziam que em qualquer buraco que você cave aparece alguma coisa, falta é verba para explorar. Três dedos horas de prosa depois, partimos ao notar que não haveria trégua com o sol.

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São João Batista
Fundada em 1697 pelo Pe. Antônio Sepp, um dos principais atores na história da missões. Foi ele quem conduziu milhares de indígenas, oriundos da redução de São Miguel Arcanjo, rumo à fundação de São João Batista em uma terra onde não havia lavoura nem habitação.
São João Batista se destacou pelo pioneirismo na produção de objetos metálicos como sinos, ferragens e ferramentas, influenciada pelo geólogo e minerador Pe. Sepp. O ferro era extraído da pedra itacurú, abundante na região. Em 1730 a redução abrigava mais de 4,5 mil habitantes.
Das ruínas, principalmente na área onde ficavam as moradias de padres e oficinas, pouco resta do desenho original. Parte se deve ao intenso garimpo em busca de "tesouros" no período pós-missioneiro. O cemitério da redução continuou sendo utilizado pelos colonizadores e população local até o século XX.

Seis da tarde, 25km pela frente, o sol conserva o sabor picante do meio-dia. O que fazer? Aprender mais uma lição:

Por aqui há pouca: sombra para se esconder, floresta para refrescar, morro para o sol se pôr cedo ou nascer tarde, curva para girar ciclista e distribuir melhor o bronzeado gratinado.

Só restou rezar pelo milagre do salvador carro do picolé. Meio milagre depois, encontramos uma senhora vendendo picolé caseiro. Na casa dela, sem o carro, mas ninguém fazia questão da montanha vir a Maomé. Até porque montanha não tinha muita. Gratos pela salvação, encontramos ânimo para encarar mais duas horas de sol ainda queimando.

Já era noite quando chegamos à São Miguel das Missões. Desaportamos as bagagens às pressas para não perder o show de luz & som nas ruínas. Um belo espetáculo sob o céu estrelado, nada mal para aliviar o aquecido e empoeirado dia.

2São Miguel Arcanjo e São Lourenço Mártir 1 dia 34 km
DIA 2 são miguel das missões, sítio arqueológico de são miguel arcanjo, sítio arqueológico de são lourenço mártir, são lourenço das missões

Um dia de curtir couro no calor, outro de mormaço reconfortante. Se ficasse por aí estaria de ótimo grado. Mas não parecia ser essa a vontade dos céus.

Comecemos pela parte boa: San Miguell, tchê! Havíamos nos encontrado no dia anterior, à noite. Mas somente à luz do dia foi possível entender a grandeza da ruína mais famosa dos Sete Povos da Missões.

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São Miguel Arcanjo
Fundada em 1687, após duas tentativas em outros locais, São Miguel foi sinônimo de grande desenvolvimento. Em 1750 a redução atingia cerca de 7 mil habitantes, motivando os jesuítas a fundar outras reduções nas proximidades. Vencida após grande resistência na Guerra Guaranítica, a população fugiu incendiando a redução a fim de frustrar os saques portugueses.
No entanto, das ruínas de missões no Brasil, São Miguel foi a que mais resistiu ao tempo. A fachada das ruínas da igreja tornou-se cartão postal do Sete Povos. Sua consolidação foi a primeira grande obra do IPHAN, referência para a conservação de monumentos históricos no Brasil. Foi declarada Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO em 1983.
No mesmo sítio arqueológico encontra-se o Museu das Missões, obra projetada por Lúcio Costa com base nas antigas moradias indígenas. No acervo estão dezenas de estátuas, sinos e muitos fragmentos de decoração arquitetônica oriundas de Santo Ângelo e dos outros povos.
Vale visitar o local e prestigiar o show de Som e Luz que acontece diariamente, depois do pôr do sol. O espetáculo se passa em frente às ruínas da Igreja, sendo ela própria personagem principal. Os diálogos com ícones da história missioneira, como o Pe. Antônio Sepp e o líder indígena Sepé Tiarajú, narram desde a instalação das Missões até o final da Guerra Guaranítica.

Na entrada, o Museu das Missões preserva detalhes da vida e obra missioneira. As ruínas, ao contrário de São João Batista, transmitem uma boa noção espacial da planta das reduções e seus elementos. Tudo imponente e bem conservado.

  • Nota do Editor: Relativize-se, atento leitor, ao ler frases como "bem conservado" e "em bom estado". Estamos falando, al fín y al cabo, de ruínas. O critério de comparação aqui é de uma com a outra. Não espere encontrar uma igreja erigida e ativa. Sequer sustente a hipótese de ver um padre catequisando um índio.
  • Editor II, em carta ao Editor I: Subestimas, prezado editor, a percepção de nosso distitivo leitor. É notório que este, por si só, será capaz de avaliar adjetivamente tais formas e espaços.
  • Editor III, sabe-se lá de onde: Digo mais: uma construção do século XVII, mazelada por tantas guerras e saques, certamente será alvo de admiração no estado em que se encontra.

Retomamos a estrada. Em pouco tempo o mormaço confortável se converteu em um céu escuro e pouco amistoso. Chuva. Uma senhora de uma chuva. Na estrada isolada, uma carinhosa "nata" de lama se agarrava às bicicletas como podia.

Perto das 13h chegamos às ruínas de São Lourenço Mártir. Sob muita chuva. Até as 17h, chuva. Na primeira trégua visitamos as ruínas, lavamos engrenagens - e lá vamos nós. Desviávamos o trajeto para o asfalto, mas nossa alegria durou tão pouco quanto a estrada - interrompida por um rio transbordando. Um colono animado até nos deu esperanças de que o rio baixaria, mas a chuva veio ainda mais animada e nos encurralou novamente.

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São Lourenço Mártir
Fundada em 1690 pelo Pe. Bernardo de la Veja. Sua população, inicialmente proveniente de Santa Maria Mayor, chagou a cerca de 6,4 mil habitantes em 1730.
São Lourenço permaneceu habitada por indígenas e mestiços até o início do século XIX. Relatos desta época mencionam a igreja como uma bela construção que ainda continha colunas de madeira e altares com ornamentos dourados. Ao longo do século XIX as construções sofreram saques e retirada de materiais pelos povoados cercanos.
Em 1970 o sítio arqueológico de São Lourenço foi tombado como Patrimônio Histórico Nacional. As ruínas remanescentes da igreja, do colégio, do cemitério, da quinta e da adega encontram-se abertas à visitação, embora parcialmente encobertas pela vegetação.
Nota do Roteirista
Eram 20h da noite, após 7h de temporal, e continuávamos debaixo de uma marquise, esperando a chuva passar . O único acesso ao asfalto tinha sido interditado pela enchente. Parecia preocupante.

Sob chuva, retornamos ao vilarejo para descobrir que a única hospedaria já não existia mais. Mas encontramos o milagre do dia no CTG local: Dona Nilce e seu marido - gaúcho até às galochas - nos salvaram com abrigo e jantar. Nos acomodamos ao som daquele barulho-bom-de-chuva-lá-fora, na esperança de que silenciasse durante a noite.

3Fim da chuva rumo a Porto Xavier 1 dia 102 km
DIA 3 são lourenço das missões, são luiz gonzaga, roque gonzales, porto xavier

E aquela esperança de que a noite esgote a chuva? O barulho-bom persistiu até nos despertar pela manhã, já-não-tão-bem-quisto a esta altura. Aceitamos a primeira garoa que passou - afinal, nesse ritmo de marquise não sairíamos da varanda, quanto mais do país.

Esse não foi um dia de sítios históricos. O medo do sol torrante e da chuva torrente - oh, céus! - nos convenceu a ajustar o roteiro e exercitar a fé no ritmo missioneiro. Mal saímos no asfalto, chuva. Parada no posto, chuva. Almoço em São Luiz Gonzaga, chuva. A esta altura só tínhamos dois tipos de indumentária: encharcadas ou sujas (e encharcadas).

Começamos a tarde debaixo de uma garoa chata. Mas pedalávamos crentes que o ritmo de asfalto iria, ao menos, compensar o atraso no planejamento. E não é que a fé moveu nuvens? Algumas horas depois estendíamos as roupas pra secar em plena praça matriz de Roque Gonzales.

"Mendigos forasteiros."

Um homem que passava (em pensamento)

Estrada seca, roupa demi-sec, ciclista espumante e uma projeção já mais suave. O asfalto rendeu bem, e nem o "cerro de Porto Xavier" nos desanimou. Mal caía a noite já saia um macarrão-de-quarto-de-pousada para abençoar dois peregrinos em recuperação. Venga, Arrrrentina!

4Desembarque na Argentina e Santa María la Mayor 1 dia 78 km
DIA 4 porto xavier, argentina, san javier, itacaruaré, reducción de santa maria la mayor, leandro n. alem

Recomeçam os trabalhos na última cidade brasileira do roteiro. Saímos quase atrasados para a balsa que liga as irmãs Porto Xavier (BR) e San Javier (AR). Atracando em solo argentino, fila en la imigración - como todo procedimento alfandegário que se presta. O fiscal se aproxima:

  • ¿Que hay en las bolsas?

Apesar de pensar "agua de la lluvia, es solamente lo que cargamos", alguma resposta perto de "ropas" nos permitiu adentrar o domínio dos hermanos. Primeiro, recarregar mantimentos. Segundo, encontrar uma oficina para a kate. Pela manhã, na pousada, a moça havia sofrido uma queda alavancada numa canaleta, fazendo a porca torcer o rabo roda torcer o aro. Guiados pelo prestativo Pablo, portunholamos até encontrar reparo na Bicicleteria Michel.

Logo estávamos en la Ruta Provincial 4, rumo à próxima redução: Santa Maria la Mayor. Quase chegando lá...

Um jogo para você, atento leitor:

  1. Começou a chover.
  2. Começou a garoar.
  3. Uma mudança climática repentina mudou o curso das coisas.
  4. Um dos ciclistas esqueceu o CPF em casa.
  5. Apenas uma afirmação é falsa (uma pena, pois seria a única a não fazer diferença caso fosse verdadeira).

Se o termo redução foi cunhado para definir a aglomeração dos nativos em um território, nossa vivência foi um sucesso. Estávamos mais uma vez reduzidos nas acomodações de uma missão, enquanto uma tempestade desabava lá fora.

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Santa María la Mayor
Fundada em 1626, inicialmente instalada nas proximidades de Foz do Iguaçu. Devido aos constantes ataques de bandeirantes a redução precisou migrar, estabelecendo-se no local definitivo somente no final do século XVII.
As ruínas repousam nas proximidades do rio Uruguai, na província de Misiones, Argentina. Há vestígios de muros de grande porte, além de um templo provisório que foi mantido pelos colonizadores.
O sítio arqueológico abriga um centro de visitação com painéis informativos e uma grande maquete da redução. Uma sala especial remonta a história da primeira imprensa do sul da América, construída à época em madeira, estanho e chumbo. Embora exposta em Santa María, a prensa é originária da redução de Loreto.
Juntamente com as outras três reduções argentinas (vide dia 5), Santa María foi declarada Patrimônio da Humanidade pela UNESCO em 1983.

Durante uma pequena trégua caminhamos por Santa Maria. Assim como nas reduções brasileiras menos conhecidas, como São João Batista, aqui os traços da República Guarani não estão tão evidentes. Há trabalhos de recuperação, mas não há muitos muros de pé para contar história.

De volta ao centro de visitantes, o tempo(ral) nos permitiu aproveitar com calma as maquetes, cartazes, artefatos históricos e até um mate-papo com o pessoal que trabalha lá. Dueña Blanca nos divertia imitando sotaque brasileiro (pormaisque isso não pareça fazer sentido algum), e vez por outra largava no meio de uma frase em castelhano:

  • Puxumacadêra!

O aguaçeiro aliviou no meio da tarde. Partimos para digerir mais 45km, con cerros. Apesar de outro fim de dia apurado pelo mau tempo, chegamos bem (molhados). Paramos numa hospedaria caseira para, logo mais, re-pararmos num restaurante caseiro próximo. Pedimos um bife com salada - bem mais salada que bife, por favor. Logo chega um travesseiro duplo de carne, mas a salada não achamos até hoje. É nessas horas que a gente entende que está em outro país.

5Santa Ana e Nuestra Señora de Loreto 1 dia 65 km
DIA 5 leandro n. alem, bonpland, santa ana, reducción de santa ana, loreto, reducción de nuestra señora de loreto, reducción de san ignacio miní, san ignacio

Finda a chuva, amanhecemos na fresca neblina, umidecido leitor! Partida matutina, poucas serras, bom clima e bom ritmo na estrada. Receita perfeita para cumprir, tranquilamente, três grandes missões argentinas em um único dia!

A proximidade geográfica dos três sítios garante o movimento intenso de turistas e peregrinos. Na primeira parada, em Santa Ana, uma visita guiada nos proporcionou explanações mais formales do que as conversas à meia-chuva. Apesar da cobertura da vegetação, em meio às ruínas ainda se vêem trechos de antigos canais de irrigação e pedaços de estruturas em "madeira ferro".

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Santa Ana
Fundada em 1633, no território do atual Rio Grande do Sul. Sob a ameaça dos bandeirantes, a redução migrou inicialmente para as margens do Rio Paraná (1639). Em uma segunda migração (1660), fixou-se no local definitivo, na atual província argentina de Misiones, a poucos quilômetros das reduções de Loreto e San Ignacio.
Um dos fundadores de Santa Ana, Pe. Cristóvão de Mendoza, foi o responsável pela introdução do gado no Rio Grande do Sul.
Com um traçado urbano um pouco diferente das demais, tem a igreja localizada em uma plano mais alto que a praça, formando uma escadaria à frente. Nessa missão é possível identificar alguns pontos do antigo sistema de fornecimento de água, um conjunto de canaletas expostas e subterrâneas.

Com o sol a pino, não pudemos evitar uma bela siesta após o almoço. Com a lona estendida debaixo de uma sombrosa árvore, o peso dos dias apertados sob tempo ruim só fez valorizar a boa hora de sono gasta ganha.

Nota rodoviária
As condições de tráfego foram tranquilas até aqui. Mas a RN12, principal via de acesso à província e corredor de turismo (¡viva las tacaracas del iguazú!), revelou a apertada realidade das rutas sin banquisa.

Encostamentos e acostamentos à parte, chegamos às ruínas de Loreto. A esta altura percebíamos as diferentes iniciativas de preservação que estiveram em curso no antigo território dos 30 povos. Mas não era sagacidade nossa, arqueológico leitor: muros escorados e áreas protegidas falam por si. E as placas explicativas também ajudam bastante.

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Nuestra Señora de Loreto
Fundada em 1610, às margens do rio Paranapanema, foi a segunda Missão dos trinta povos. Posteriormente migrou para a localização atual das ruínas.
O responsável pela migração desta e de outras missões foi o Pe. Antônio Ruiz de Montoya, então provincial das reduções. Sepultado em Loreto, Pe. Montoya é lembrado pela instalação da imprensa, inaugurada na produção do primeiro catecismo e do primeiro dicionário da língua Guarani.
Loreto recebeu recentes investimentos da Alemanha para recuperação de uma capela, obra que infelizmente não foi concluída pela passagem de um ciclone na região em 2007. Outros trabalhos de escavação estavam em curso na época dessa expedição.

O sol já tendia ao horizonte quando chegamos ao amistoso hostel em San Ignacio Miní. Compramos ingressos para o espetáculo noturno nas ruínas, cientes de que seria similar ao de São Miguel. Ledo engano, a experiência é ainda mais encantadora. Guiados numa caminhada às escuras pela missão, assistíamos absortos as encenações históricas ganharem vida ao serem projetadas em árvores, paredes e cortinas de fumaça. Imperdível. Nos restou dormir, cansados e encantados, aguardando que o dia seguinte "clareasse" ainda mais nossa experiência nas ruínas de Miní.

6San Ignacio Miní e travessia para o Paraguay 1 dia 50 km
DIA 6 san ignacio, reducción de san ignacio miní, gobernador roca, corpus, paraguay, bella vista, obligado, hohenau, reducción de la santísima trinidad del paraná, trinidad

Acordamos uns quinzes minutos depois de levantar, saboreando um amistoso café coletivo no hostel. Estávamos em San Ignacio Miní, a "São Miguel" argentina. Aqui se encontram os maiores investimentos em patrimônio, o museu com maior acervo e a maioria dos turistas. Parada indispensável para quem pretende explorar a região.

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San Ignacio Miní
Fundada em 1632 pelos sacerdotes José Cataldino e Simón Masceti, na região do Guairá. Assim como Loreto, para resistir aos bandeirantes a redução migrou para a atual região de misiones (1696).
A redução foi destruída em uma invasão de paraguaios no início do século XIX, tal como Loreto e Santa Ana. Somente na década de 1940 o governo Argentino passou a dar atenção à região, iniciando um processo de limpeza e restauração das ruínas.
Assim como São Miguel é capital dos Sete Povos no Brasil, San Ignacio Miní é o ícone missioneiro argentino. Na redução se concentra o maior investimento na restauração e conservação das ruínas, no turismo e no museu histórico anexo.
Nas ruínas é possível reconhecer todos os elementos urbanos de uma redução: pátio, casa dos índios, casa do caciques, oficinas, colégio, residência dos padres, pomar e igreja. Destacam-se as conservadas habitações indígenas, a estrutura da igreja e seus ricos ornamentos trabalhados em pedra grês.
Em Miní se apresenta um espetáculo noturno de luz e som, mais contemporâneo e tecnológico que o de São Miguel, imperdível. Grupos de visitantes são guiados pelas ruínas através de diversas estações, assistindo às cenas da história das missões projetadas nas ruínas e em telas virtuais de fumaça.

Miní era a missão mais conservada que conheceramos até então. Ali, talvez ainda sob influência do show noturno da véspera, nos sentíamos transportados para o século XVI, compartilhando o mesmo espaço dos neófitos.

Nota de sanidade
Não atribua esta reflexão, atemporal leitor, a um surto delirante, insolação estradeira ou escassez nutricional. Tudo depende da percepção entregue ao instante presente. Sensações como estas não são exclusividade de Miní, e as missões que vêm por aí estão mais vivas ainda.

Partimos da pequena San Ignacio rumo à pequena, subutilizada e semidesativada balsa de Corpus. Uma travessia depois, estávamos no Paraguai. Sem moeda local (o Guarani, veja só!), fizemos o câmbio na chegada da balsa. Se serve como sugestão, não o faça. Mais uma alfândega, mas a pergunta mudou dessa vez:

  • ¿Sos de españa?

Elogio ou crítica ao nosso espanhol? Não sabíamos ao certo, mas ficou um clima de conversa de texano com britânico. Seguimos Paraguai adentro, recebendo o verão nas costas. Passava das seis quando chegamos à Trinidad.

Apesar do horário, decidimos visitar o sítio. Não nos arrependemos. Como em nenhuma outra missão, tudo aqui estava muito organizado e preservado. Calçadas, paredes, canaletas e paredes em excelente estado, coroados pelo dourado do sol em retirada. Uma grande surpresa para quem já havia visitado tantas outras.

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Santísima Trinidad del Paraná
Fundada tardiamente em 1706, na margem ocidental do Rio Paraná, atual província de Itapúa no Paraguai. Grande parte dos seus habitantes vieram da redução de São Carlos, na antiga região do Tape (atual Rio Grande do Sul).
Ao contrário de outras reduções depredadas desde os conflitos com bandeirantes, a queda de Trinidad só ocorreu na metade do século XXI, por ordem dos ditadores paraguaios Francia e Lopez. Foi novamente habitada até o século XX, estabelecendo-se como o maior conjunto arquitetônico de ruínas dentre os trinta povos.
As varandas, as colunas e todo traçado da casa dos índios podem ser vistos claramente. A maturidade da administração jesuíta e da vivênicia dos próprios índios transparece nos detalhes e na ousadia da arquitetura refinada. A igreja foi citada pelo historiador Jaime Oliver como "a maior e melhor de todas, feita de pedra e com uma grande abóboda, muito clara, simétrica e adornada, causando inveja em muitas cidades europeias".
Trinidad também apresenta mudanças no modelo de planta das reduções. Os elementos (sacristia, residência de padres, oficina, cotiguaçú) foram redistribuídos, além da inclusão de um templo menor e de uma torre de observação.
Juntamente com a redução paraguaia de Jesús de Tavarangué (vide dia 7), Trinidad foi declarada Patrimônio da Humanidade pela UNESCO em 1993.

Buscando pouso descobrimos a rede Posadas turisticas de Paraguay, um projeto do governo espanhol para capacitação de pequenas pousadas familiares. Assim chegamos à Don Paraguay, ou melhor, a acolhedora casa de César e Celsa. Autênticos descendentes dos Guaranis, nos contaram sobre um tempo não distante em que a missão ainda era habitada. Em meio às conversas sobre a realidade social e econômica do país, nos deixaram uma mensagem que marcou:

  • Ciudad del Este nos es Paraguay.

Não pretendemos questionar vossa inteligência ao valorizar esta frase, sociopolítico leitor, mas sim dividir uma experiência. A cultura dessa nação vizinha é resultado da epopéia dos trinta povos da missões, a própria trajetória do povo Guarani. Não se resume a uma rua suja com embusteiros oferecendo produtos falsificados. É sim o território onde o idioma do índio que recebeu o jesuíta ainda é oficial.

7Jesus de Tavarangué 1 dia 74 km
DIA 7 trinidad, jesús, reducción de jesús de tavarangüé, encarnación, puente internacional, argentina, posadas

O fim! O fim está próximo! Último dia de expedição, uma última grande missão.

Acordamos uns 15 km depois de levantar, já chegando em Jesús. Mais uma vez, constatamos que o roteiro planejado não poderia ter sido mais feliz. Em Jesús de Tavarangué as ruínas contam a história de uma missão que não chegou a ser concluída. Inacabada, alvo de poucas guerras, Jesús divide com Trinidad o título de redução mais conservada.

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Jesús de Tavarangué
Embora fundada em 1685, o povo de Jesús só veio se estabelecer no atual local em 1748, após três outras mudanças. Por conta disto, recebeu o título de "pueblo peregrino".
As edificações que se encontram no local são consideradas não apenas ruínas, mas sim o resultado de uma obra inacabada, como o próprio nome diz: Tavarangué significa “cidade que deveria ser”. A redução foi abandonada inconclusa durante a expulsão definitiva dos Jesuítas, em 1768.
Nem por isso Jesús tem menor importância histórica. Aqui se revelam os únicos traços arquitetônicos de estilo hispânico, observados nos arcos do tríplice pórtico de entrada, similares aos encontrados na região da Andaluzia. As colunas fogem do estilo clássico ao apresentar duplo jogo de capitéis.
As ruínas paraguais de Trinidad e Jesús, embora não tão alardeadas como a brasileira São Miguel ou a argentina San Ignacio Miní, constituem as mais conservadas e impressionantes expressões da herança missioneira jesuítico-guarani.

Ir a São Miguel conhecer as missões e não cruzar a fronteira para visitar Miní seria um desperdício. Mas desperdício ainda maior seria deixar de lado as ruínas paraguaias, as sorpresas epetaculares de Trinidad e Jesús coroaram o fim da nossa missão. Nem sol, nem poeira, nem os cerros do caminho disfarçaram os sorrisos estampados pedalando tarde adentro.

E tarde já era quando chegamos na alfândega de Encarnación. Os sorrisos foram abalados quando soubemos que não se pode cruzar en bici a ponte para a Argentina. Algum pânico depois, lá estávamos: nós, duas bicicletas carregadas, um ponto de ônibus convencional e meia esperança de conseguir embarcar. Pára um ônibus urbano comum, lotado, e perguntamos:

  • ¿Se puede subir en bici?

Sem perguntas, o motorista abre a porta de trás e embarcamos, ajudados pelos passageiros. Para eles talvez até seja comum, mas para nós foi o milagre do dia. Vai tentar fazer isso no Brasil - não é fácil nem em ônibus rodoviário!

Do outro lado da ponte, já de noite, desembarcamos em Posadas. Outro mundo, completamente distinto dos ares da expedição até então. Posadas é praticamente um Balneário Camboriú, só que na Argentina. Não tem mar, mas tem um enorme lago represado, calçadão estiloso, gente correndo e desfilando... Mas como não é nosso lago nossa praia, atravessamos a cidade até achar uma hospedagem próxima da rodoviária.

Termina aqui a missão (dada e cumprida) de dez anos do odois. Ou melhor, terminou aqui a expedição. A peregrinação começou muito antes, nas pesquisas sobre o momento histórico missioneiro, e seguiu adiante, revisando e aprofundando tudo que foi visto e vivido. E foi além, até chegarmos a estas palavras, imagens e sons que comungamos contigo, confidente leitor. E se pudéssemoas ainda dizer algo, diríamos:

Ao viajar, caminhe com presença e mergulhe com profundidade. Imergir no universo de uma viagem é a chave para desfrutá-la com riqueza e plenitude.

Serviços #

Hotel Debacco. Mara. (55)3312-7755, R. Borges de Medeiros, 2426 - Santo Ângelo - RS.

Hotel Barrichello. Vera. (55)3381-1272, R. Borges do Canto, 1567 - São Miguel das Missões - RS.

CTG Rodeio das Missões. Nice e Lalo Cortes. (55)3352-1244. São Lourenço das Missões. São Luiz Gonzaga - RS.

Hotel Farol. (55)3354-1160. R. 15 de Novembro, 456. Porto Xavier - RS.

Balsa Porto Xavier (BR) / San Javier (AR). Todos os dias, período diurno. Link

Bicicleteria Michel. +54(3754)482-929. R. Lentini Fraga, 328. San Javier - Misiones - Argentina.

Hospederia Ruta 4. +54(3754)420-487. R. 25 de mayo, esq. RP4. Leando N. Alem - Misiones - Argentina.

Hostel El Jesuíta. Hermínia. Av. San Martin, 1291. San Ignacio - Misiones - Argentina.

Posada Don Paraguay. Celsa e César Campos. +595(985)278-463 / 659-175. Trinidad - Itapúa - Paraguay.

Terminal de Omnibus de Posadas. Reunidas. +54(3752)454-795. Posadas - Misiones - Argentina. Link

Expediente #

Registros escritos por du e lulis, imagens por lulis, traçado por du e heil.

Pedalado por du, lulis.

Publicado em 18 jan 2015.