Barragem Piraquara II
Pedalar é uma ação reflexiva que tem mais sentidos do que se pode imaginar parado, filosófico leitor. O pedalante percorre ciclicamente o seu e outros tantos mundos, indo e vindo, respirando e transpirando, absorvendo e deixando-se absorver no caminho em que conduz a bicicleta (ou em que a bicicleta o conduz).
Diferente do veículo motorizado, o tempo na bicicleta é mais calmo, mais perceptivo, mais leve. Como você já deve imaginar (ou saber), anímico leitor, pedalar lava a alma. O que você não sabe é que pedalando se lava a alma até com refrigerante vagabundo. O escritor gaúcho Moacyr Scliar, perda recente e irreparável da literatura nacional, soube traduzir com fidelidade (e muito mais elegância) esta sensação temporal (e líquida):
"Preparar café filtrado é uma coisa artesanal que para os puristas inclui até a moagem dos grãos; um processo lento, cuidadoso, meditado. A água fervente vai sendo despejada aos poucos, permitindo uma negociação (cujo resultado é a intimidade) entre o líquido e o pó. Já o expresso, como diz o nome, é um café automatizado, com pressa. O vapor passa ligeirinho pelo pó de café, extrai dali o máximo que pode e se condensa para que se possa tomá-lo."
Moacyr Scliar, Do jeito que nós vivemos (2007)
Tudo bem, tudo bem: o texto não discorre sobre bicicletas - e talvez Scliar nem pedalasse sobre elas. Também não há registro do costume de pedalar bules, tampouco de passar bicicletas no filtro (embora seja comum passá-las no líquido e no pó). No entanto, o romancista converge para o mesmo ponto ao defender a mesma sensação, a mesma paixão pela fuga do domínio do tempo - muito embora o faça com outro aroma, outro sabor. A alma é a mesma, a calma é a mesma, só que o sabor do cicloturismo é de refrigerante vagabundo.
Ah, sim, cicloturismo! Afinal, tudo isso é sobre andar de bicicleta, não é, cíclico leitor? Pois bem, neste dia fizemos um passeio leve e com apenas um objetivo banal (algo que só a Refrilosofia Vaga pode explicar). Conhecemos e revisitamos alguns belos caminhos de Piraquara, tangendo a represa nova (ou quase nova) em vários pontos. Inclusive na cabeceira da barragem, visitando o mirante que não ainda não existe (embora a placa do mirante lá exista). E, sim, sentamos em um boteco e dividimos um refrigerante vagabundo. Claro, claro, pedalamos também.
- Refrilosofia Vaga
- Corrente filosófica oduísta de vertente véthica que consiste tão somente em adotar um veículo cíclico e percorrer um caminho afastado com apenas uma pretensão: tomar um refrigerante vagabundo.
- - Mas, assim: tão pouco?
- Sim, tão pouco. Quando se quer quase nada, tudo que se tem já é muito, quase tudo. E é nessa poucoqueressência que as espectativas não sobrepujam as experiências. É nesse pouco querer que o caminho, a bicicleta e o ciclista tonam-se parte de uma só realidade vívida e experiencial. E é nessa mesma garrafa, em que se mata a sede fisiológica e filosófica, que reside a beleza e a sabedoria do refrigerante vagabundo.
Ao final da cafeínica crônica, Scliar aponta um estudo sobre a elevação do colesterol nos adeptos do expresso e conclui: "Meu palpite é que, na Batalha Final, vencerá quem tem menos colesterol. E menos pressa para as coisas da vida.". Menos expresso, mais calmo. Parece bom, cafeilosófico escritor, obrigado pela dica. Do jeito que nós pedalamos.
- Barragem Piraquara II
- Construída entre 2003 e 2008, Piraquara II é a mais nova entre as quatro barragens que abastecem a grande Curitiba. Alimentada pelos rios Iraí e Iguaçu, Piraquara II encontra-se dentro da área de preservação ambiental dos mananciais do Altíssimo Iguaçu. Sua área alagada é de 5,6 km², totalizando a capacidade de armazenamento de 21 milhões de metros cúbicos de água. A barragem localiza-se no munícipio de Piraquara ("toca do peixe", em tupiguarani), a cerca de 30 km do centro de Curitiba.
Fonte: Sanepar
Expediente #
Roteiro e castanholas ausentes por Du, fotos e texto por Lulis, para Scliar.
Pedalado por lulis, thiago, arce.
Publicado em 28 fev 2011.